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Reflexões sobre a web arte em novos contextos
Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)
1. Antecedentes
Este trabalho prossegue estudos anteriores, no qual me dediquei a mapear a então produção incipiente em web arte, observando a predominância de determinadas características em trabalhos de arte presentes na rede mundial de computadores – a Rede Internet –, especialmente nos anos 90 do século XX e com especial atenção para a produção de artistas brasileiros. Em relação à grande rede, esse período coincide com a sua abertura comercial e sua veloz popularização entre inúmeros usuários.
A grande rede surge no fim da década de 60, por conta da preocupação do departamento de defesa (DARPA) dos Estados Unidos em um ataque nuclear massivo – tempos de Guerra Fria com a ex-União Soviética (URSS). Cria-se, então, uma rede de computadores, inicialmente chamada ARPAnet, descentralizada e super-ramificada, capaz de manter conectados centros de inteligência militar. Em 1985, a rede já estava ligada a outras redes com fins de pesquisa entre universidades americanas e européias. Em 1991, a rede Internet chega ao Brasil, em universidades públicas e em 1994, começam as primeiras tentativas de acesso comercial a Internet.
A Internet, em poucos anos de popularidade, virou sinônimo de modernidade e avanço tecnológico. Tanto indivíduos quanto empresas se vêem na necessidade de “plugar-se”, de existir no “ciberespaço” e estabelecer relações por meio do virtual. Segundo dados divulgados pela União Internacional de Telecomunicações (UIT) em 2008, os números refletem a disseminação da rede entre as pessoas no mundo no novo século: ao final do ano 2000, o planeta possua 200 mil internautas; em 2008, os usuários já ultrapassam 1,5 bilhão. Esse boom na rede é evidentemente acompanhado de iguais proporções para a criação de novos sites e uso de outros espaços de publicação e navegação – como comunidades virtuais, blogs e outras ferramentas mais recentes. O caráter massivo que a Internet toma no século XXI nos condiciona a observá-la com uma nova atenção.
Quando comparamos o contexto iniciatório da rede nos anos 90, um primeiro ponto a ser observado é que a figura do internauta era tomada por uma natural incipiência em sua experiência de rede. Muitos sites clamavam pela redundância em suas páginas, emblematicamente trazendo enormes setas piscantes acompanhadas de implicantes “clique aqui”. A redundância era inversamente proporcional a pouca experiência em rede de seus usuários: o sentido de navegar ou surfar na web, ainda era um domínio em formação – da mesma forma que as expectativas deste usuário.
Neste contexto, o universo poético das ações artísticas na Internet muitas vezes se apropriava da sensação de incerteza e desconhecimento; as telas com seus códigos e conteúdos distribuídos por longas barras de rolagem, as necessidades de instalação de inúmeros plug-ins , os conteúdos multimídia condicionados a longas esperas, os conteúdos pouco dinâmicos e especialmente a pouca atratividade visual das páginas da chamada primeira geração da rede, certamente fazia daquela situação, uma experiência muito mais underground do que hoje – o ambiente propício para gerar desvios poéticos.
E claro, há que se observar o caráter de novidade: transmitir imagens com recursos mínimos, por exemplo, implicou não somente em nova concepção de transmissão – conceito até então exclusivo das grandes empresas de telecomunicações – como também era o enunciado de uma das mais recorrentes cenas do imaginário tecnológico. Em determinados casos, apenas o “estar na rede” já era o bastante – o poder de atravessar fronteiras em cliques, encurtar as distâncias entre os homens e as imagens. A rede apresentou-se para muitos artistas como a resposta a longas buscas anteriores: os artistas da chamada Mail Art – um dos primeiros movimentos em torno da distribuição transnacional e da produção colaborativa – que fazia uso do correio tradicional para troca e trânsito de trabalhos artísticos, certamente enxergaram os seus desejos concretizados. Da mesma forma, a Internet se apresentou como o ambiente propício de todas as teorias democratizantes – da informação a arte – visto que possíveis práticas de controle na rede eram muito menos evidenciadas. Enfim, todas as incursões de uma primeira geração de sites trabalhavam no sentido de formação de um modus operanti da rede, ao mesmo tempo em que diversas incursões artísticas – a chamada web arte – buscavam o desvio daquilo que se esboçava.
2. O que é web arte?
A produção em web arte necessariamente está ligada ao campo de significações que a Internet – em especial, ao universo da World Wide Web – suscita, como também às especificidades técnicas e conceituais que nela se inserem. Tecnicamente falando, essa produção é calcada na efemeridade: a tecnologia permanece em caráter de atualização constante e deste modo a cada instante os trabalhos estão sujeitos a novos elementos em sua visualização, tais como novos browsers ou plug-ins. Ao contrário de outros meios mais tradicionais, a recepção técnica pode variar conforme as especificidades de cada equipamento que se conecta ao trabalho, tornando-se algumas vezes impossível determinar com precisão a visualização e funcionamento em cada computador visitante.
No que concerne à sua distribuição, a web arte proporciona um espaço em que os trabalhos são vinculados de modo independente, visto que não é necessário que o mercado da arte aceite determinada produção para que ela venha a estar disponível ao público. Quando baseados em sites da rede, os trabalhos são publicados e disponibilizados muitas vezes com recursos próprios dos artistas, através de seus equipamentos ou aos que tem acesso. Não só realizam a produção como também utilizam a própria rede para divulgar por meio de e-mails, blogs e/ou comunidades virtuais. É uma produção que pode desenvolver-se paralelamente ao circuito artístico convencional – não se vê freqüentemente trabalhos de web arte em espaços como galerias e grandes eventos das artes em geral.
De outro lado, porém, ainda que exista essa independência, é visível que os artistas que produzem web arte buscam se aproximar das instituições artísticas e estas, por sua vez, vêm gradualmente observando essa produção especialmente por suas fortes nuances contemporâneas: o ato de estar em rede hoje é o que fora a invasão do vídeo (ou da televisão) em décadas atrás. Há algumas questões neste jogo: os artistas ainda desejam alguma legitimação, muitas vezes por motivações institucionais (universidades, institutos ou necessidades de realização de projetos); os espaços que buscam discutir e difundir essa produção são muitas vezes segmentados, criando nichos restritos – incursões mais pluralistas arriscam-se em descontentar tanto os tecnológicos como os mais convencionais.
Divergências à parte, o desprendimento do mercado – mesmo porque o caráter imaterial e público da web arte dificulta sua comercialização – e sua veiculação sem intermediários, proporciona uma produção que consegue congregar ao mesmo tempo liberdade de produção com acessibilidade ao seu público. Em outros meios, esses dois elementos simultâneos só seriam possíveis àqueles que possuem renome suficiente para que sua produção seja vista sem restrições. O artista da web produz e veicula o que quer, mas também caberá a ele tornar-se visível dentro dos infinitos labirintos da rede.
Atualmente, podemos entender a produção que faz uso da rede Internet dialoga com três condições que são significativamente representativas de diferentes práxis. É necessário assinalar que se trata de diferentes direcionamentos que muitas vezes são complementares e não que possuem qualquer pretensão classificatória de abarcar toda a produção presente na rede. Em especial, nas três situações, observamos trabalhos que já constituem elementos históricos da web arte e que nos direcionam a entender as situações presentes enquanto partes de um percurso já consolidado.
3. Telepresença
O tempo das redes é o tempo real. Seja por meio do fluxo informacional incessante – lidando cada vez mais com um presente se tornando passado – seja pelo uso do tempo simultâneo, do tempo “ao vivo” – familiar denominação dada pela cultura televisiva. Vários artistas buscam explorar esta instância em suas experimentações, mas na rede – muito diferente da cultura broadcast – a transmissão em tempo real nos primórdios da popularização da Internet esteve muito mais relacionada com a monotonia das imagens de sistemas de vigilância, do que com as atuais possibilidades de transmissão em banda larga. Dos pioneiros, um trabalho de web arte muito conhecido de uso de imagens em tempo real através de imagens estáticas é The Ghost Watcher (1996) de June Houston, onde a artista propõe aos visitantes que através das imagens de câmeras posicionadas debaixo de sua cama, elaborem relatórios sobre o que viram. Há várias câmeras distribuídas pelo espaço, podendo-se vigiar sob diversos ângulos.
Neste contexto há um conceito pertinente: a telepresença. FADON (1997), trata a questão de modo bastante amplo:
“A tele-presença implica numa projeção simbólica - uma presença não concreta - que se apresenta e representa em seu lugar, convertendo-se num ritual. No limite, a tele-presença sagrada se chama onipresença. A (tele) ausência se mostra nos encontros com os deuses e divindades, por exemplo, nas peregrinações ou nas cerimônias públicas e privadas, através da submissão do fiel/crente. Contemporaneamente tem-se a própria tele-presença sagrada mediada por sistemas de telecomunicação, principalmente rádio e TV, por vezes adotando a estética do espetáculo profano”.
Neste sentido, a essência da telepresença não está restrita aos meios tecnológicos, muito pelo contrário, aliás, ela estava já presente na antiga prática do transe religioso, na tentativa de transcender um mundo físico, transpor-se além desta dimensão e deixar-se de si mesmo. Uma presença condicionada. Os meios tecnológicos por sua vez, sistematizam essa condição, muitas vezes viabilizando o contato com o “outro” ou mesmo lançando o indivíduo em um novo espaço.
A telepresença está evidenciada nos meios que lidam com o tempo instantâneo e/ou compartilhado como telefone, na televisão, no rádio, na rede Internet, assim como nos sistemas de realidade virtual que reforçam por meio da imersão, uma condição de deixar-se de si mesmo, onde o corpo embora presente exista em função de outra condição. As relações de tele-presença e teleausência são evidenciados em sistemas interativos como na comunicação interpessoal via rede Internet e no universo dos jogos eletrônicos. Na arte dos novos meios a telepresença proporciona trabalhos nos quais o receptor age ou explora determinado lugar seja físico ou virtual. Já a teleausência – seu contraponto – é a inexistência do indivíduo, ocupante do Ciberespaço: sentimos a Tele-ausência quando aguardamos a chegada – a conexão – de um amigo através de um programa de mensagens instantâneas; aqueles que estão em estado off-line estão teleausentes, ainda que momentaneamente. Da mesma maneira, posso estar teleausente quando ao assistir uma peça de teatro, um concerto, desligo celulares e outros dispositivos, procurando manter-me longe de qualquer ramificação do ciberespaço.
O tempo simultâneo e coletivo da rede viabiliza a existência de espaços colaborativos de participação mútua e conjunta entre os visitantes, seja através de dispositivos em espaços fisicamente distantes, em instalações tais quais espaços virtuais, onde o visitante pode ter indícios da presença de uma coletividade ativa – ou, em alguns casos, a telepresença instaurada. Há uma presença condicionada na poética do artista que pode tanto limitar-se a simplesmente oferecer caminhos múltiplos de navegação ou estabelecer convites para ações mais complexas, criativas e efetivas.
Atualmente, a discussão sobre a telepresença já não mais ocupa um lugar de protagonista diante de discussões relevantes do universo da arte e novas tecnologias: com o advento de circunstâncias mais híbridas entre estar conectado e estar simultaneamente no mundo físico, em especial, as discussões sobre uma nova condição cíbrida, propõe presenças co-existentes e complementares – e não a exclusividade de experiências a uma ou outra realidade. Mas, é evidente que a transmissão de imagens em tempo real em rede, torna-se uma prática cada vez mais massificada, o que não exclui a pertinência do tema ao falar das práticas de web. Ao contrário das primeiras transmissões populares de imagens em tempo real via web – quando o intervalo entre os frames ocupava até alguns segundos – e ainda, às grandes dificuldades técnicas para transmitir eventos em streaming, atualmente sites como Ustream, permitem transmissão e gravação em tempo real de som e imagem, com mínimas necessidades técnicas e gratuitamente. Cada usuário pode transmitir por determinados períodos do dia, tornando disponíveis vídeos gravados de cada transmissão. Bem, se ao final dos anos 90, a produção de um site ou um blog pessoal representa o início de um novo domínio da informação escrita – onde muitos escrevem para muitos – vale atentar para o fato de que agora cada indivíduo conectado com uma câmera de Internet torna-se um canal de televisão em potencial – podendo transmitir para o mundo inteiro.
4. Crítica dos meios
No subtexto de todas as teorias democratizantes que povoam a rede está subentendida uma crítica aos meios de comunicação convencionais – e por extensão a uma sociedade tecnológica que faz um uso hegemônico destes mesmos meios. É certo que antes da popularização da rede Internet, os meios de comunicação tradicionalmente repercutiam o discurso de alguns grupos que detinham algum poder, seja econômico ou político, em detrimento de parcelas da sociedade que não possuíam canais de contato de grande abrangência ou permanência. No advento da rede é evidente que as demandas de contato e reverberação de discursos independentes são efetivadas: criam-se redes de contato eficazes e ativas diante dos meios tidos como hegemônicos. Assim, a rede passa a ser um canal da crítica efetiva, pautada pela própria difusão. Neste contexto, uma parcela da produção artística em web arte estará justamente pautada em uma visão reflexiva e dissonante de qualquer apologia dos meios, bem como, na desconstrução de nossas expectativas e práticas comuns. Se pensarmos a respeito da produção em artemídia – denominação dada à produção que faz uso dos meios de comunicação – devemos observar o direcionamento que MACHADO (2004), nos dá:
“O fato mesmo das suas obras estarem sendo produzidas no interior dos modelos econômicos vigentes, mas na direção contrária deles, faz delas um dos mais poderosos instrumentos críticos de que dispomos hoje para pensar o modo como as sociedades contemporâneas se constituem, se reproduzem e se mantêm. Pode-se mesmo dizer que a artemídia representa hoje a metalinguagem da sociedade midiática, na medida em que possibilita praticar, no interior da própria mídia e de seus derivados institucionais [...] alternativas críticas aos modelos atuais de normatização e controle da sociedade”.
Texto publicado originalmente na revista PORTOARTE - Revista do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, número 28, 2010.
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