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2010

FÁBIO OLIVEIRA NUNES







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Reflexões sobre a web arte em novos contextos (continuação)

Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)

Certamente podemos estender estas considerações para a produção em web arte, sendo que veremos especialmente fortes elementos críticos em boa parte dos trabalhos. O coletivo Critical Art Ensemble (CAE) discorre sobre a estratégia da produção artística em meios eletrônicos como um “distúrbio eletrônico”. Na definição do que seria a hegemonia, o coletivo acredita que estamos diante de um poder nômade, capaz de permanecer invisível diante dos indivíduos e, ao mesmo tempo, em constante movimentação através das redes. Há um sentimento geral de que há um sistema opressor, mas não é possível localizá-lo nem identificá-lo com precisão (CAE, 2001, p.27). Esse poder nômade-invisível flui no interior dos espaços de informação. Não possui como base um mundo físico e estático – está permanentemente em ação, como o próprio mercado que nunca pára. Neste contexto, o CAE (ibidem, p.33) defende a existência de meios de distúrbio eletrônico capazes de desestabilizar a hegemonia presente – ou ao menos criar provocações. Inspira-se um tipo de resistência eletrônica que fará uso justamente dos meios em que o poder hoje flui e usufrui. Na visão do coletivo, essa ocupação coube aos artistas, especialmente:

Já que não é provável que os trabalhadores das áreas científicas ou tecnológicas gerem uma teoria do distúrbio tecnológico, coube aos artistas a responsabilidade de estabelecer um discurso crítico sobre essa nova fronteira [as redes]”. (CAE, 2001)

Em ressonância com esse poder nômade trazido por Critical Art Ensemble – que se confunde com a própria liquidez dos mercados financeiros –  observamos o trabalho dos artistas Davide Grassi (Itália) e Igor Stromajer (Eslovênia), apresentado na exposição Emoção Art.ficial 2.0, em 2004 no Itaú Cultural em São Paulo, que propunha um mercado flutuante em torno de problemas, surgindo então a Problemarket (2000). Da mesma forma que uma bolsa de valores, os artistas propõem que os problemas de toda ordem estejam sujeitos a investimentos – mostrando o modus operandi dos ambientes financeiros. Mais do que isso, o discurso dos artistas, também no mundo real, – em suas apresentações – faz uso das corriqueiras práticas do universo corporativo, seus jargões típicos, apresentações eloqüentes e clássicas roupas de homens de negócios. O trabalho e as apresentações dos artistas – como ocorrido durante o simpósio da exposição em São Paulo – suscitam a maquiagem típica das grandes corporações e o mantra inquestionável dos “resultados” a qualquer preço.

Antecedendo o empreendimento internacional da Problemarket, temos Etoy , um grupo de artistas suíços, existente desde 1994, que parodia as corporações transnacionais, a economia globalizada e os lugares-comuns destas instituições, pois trabalha sob a forma de uma companhia “líder no campo da arte contemporânea”, que está registrada como tal na Suiça. Os artistas desenvolvem vários atos através da companhia, sendo especialmente ativos através da web. Segundo o grupo , Etoy é “uma produção dentro da sobrecarregada área entre o falso e o verdadeiro, entre o espetáculo e a funcionalidade, entre excluído e incluído, entre conteúdo e aparência”.

A desconstrução dos paradigmas do próprio meio foi exemplarmente realizada pelo histórico site JODI, em 1994, uma das primeiras experimentações efetivas em web arte que se tem notícia. JODI foi heterodoxo em muitos sentidos: trazia páginas – inclusive sua abertura – com mensagens de código-fonte, ícones sem qualquer sentido, imagens e elementos intermitentes, tudo sem qualquer explicação – não havia qualquer texto ou sugestão do que realmente se tratava. Sem nada que nos faça crer o contrário, a situação diretamente nos parece algum ataque de vírus – suscitando no usuário um temor daquilo que nós podemos chamar de contaminação de seu “corpo virtual”, em última instância, o terminal. O conteúdo, prioritariamente estético desta produção dos artistas europeus Joan Heemskerk and Dirk Paesmans, contraria qualquer proposição “bem-intencionada” da rede, onde os sites deveriam funcionar com clareza, legibilidade e eficiência.

Outro caso emblemático destas circunstâncias é Unendlich, fast..., de Holger Friese, criado em 1995. O artista alemão cria um trabalho em web arte extremamente simples, que até hoje nos causaria grande estranhamento: um site de uma única página em azul que através das barras de rolagem existentes na horizontal e vertical, poderemos deslizar pela página em busca de alguma informação, imagem ou palavra. Diante da grande extensão desta página tanto horizontalmente como verticalmente, o usuário poderá simplesmente desistir e ir embora. Aqueles que forem um pouco mais exploradores irão encontrar alguns caracteres soltos - linhas e estrelas - sem nenhum link para outra página. Ao romper com as atitudes usuais (não há inclusão de hiperlinks para outras páginas ou a busca de facilidades na navegação) e causar um desconforto por conta disso, é que o artista propõe ao usuário que reflita sobre seu comportamento:

“A imensidão da tela totalmente azul, em 'Unendlich,fast...', pode nos levar (...) a uma associação entre a imensidão da rede e a imensidão do espaço sideral. O elemento oculto num ponto único e determinado da tela remete tanto à dificuldade de se encontrar uma informação na Web como à dificuldade de se localizar um ponto específico do espaço. Tanto as informações na Web, quanto um ponto no espaço ou o próprio elemento gráfico existente em 'Unendlich, fast...' se tornam facilmente localizáveis depois que suas localizações (o endereço Web, as coordenadas celestes ou a posição dos marcadores da barra de rolagem em relação ao browser) são conhecidas.” (VANNUCCHI, 1999:113)

A metáfora de "Unendlich,fast" são bem claras: tanto as estrelas quanto as linhas são elementos tidos como infinitos, assim como a rede, onde não é possível determinar onde é o término de informações. A imensa tela de cor azul – que inconscientemente já traz referências celestes ou marítimas – dado ao seu tamanho não convencional, faz com que o usuário busque a informação de um modo mais exagerado e incerto, porém não muito diferente do que está acostumado a fazer normalmente no seu cotidiano em rede. Especialmente, no interior de um meio onde a tônica do discurso hegemônico é o fluxo incessante e excessivo de informações – bem como o acesso fácil, objetivo e dinâmico – o trabalho de Friese se coloca como ícone de forte conceitualismo que nos faz refletir sobre possível estado de não-informação.

Um dos trabalhos mais curiosos no sentido de realizar uma crítica ao que diz respeito a nossa pressa na transmissão de informações é Real Snailmail (algo como “O verdadeiro correio lesma”), de 2008, uma denominação de utilizadores da Internet para referenciar ao correio convencional, segundo os criadores do projeto, o grupo britânico Boredomresearch. Trata-se de uma reflexão lúdica em torno da rapidez desejada ao enviarmos e-mails: o usuário, através do endereço do trabalho, envia uma mensagem a uma pessoa qualquer. Na instalação do projeto há caracóis que transportam em sua carapaça chips com uma antena e que permanecem em uma espécie de viveiro. Dentro do viveiro há um ponto de envio, através do qual a mensagem postada via web será transmitida para o chip presente no caracol mais próximo, em um raio de 5 cm. Do lado oposto ao ponto de envio, há um ponto de recepção. A mensagem enviada pelo usuário só será transmitida ao seu destino quando um caracol casualmente passa pelo ponto de transmissão e depois chega ao ponto de recepção.

5. Cérebro Global

Já em outra vertente, temos a noção de colaboração em rede muitíssimo evidenciada. Essa noção não é exclusiva das redes computacionais. Muito antes da popularização da rede Internet, artistas como Fred Forest já realizavam trabalhos neste sentido. Em A torneira telefônica (1992), o artista convida as pessoas a ligarem para um número de telefone – divulgado por folhetos e anúncios de jornal – que está associado a um dispositivo físico instalado em uma galeria da cidade de Turin, Itália, que despeja água em um recipiente. A ligação, porém, não é simplesmente local. O sinal passa por New York, Tóquio para daí voltar a Paris, numa espécie de jogo entre os satélites geoestacionados na órbita terrestre. Após 15.000 chamadas recebidas, o balde transbordou, inundando o piso do espaço. Esse trabalho não só se relaciona com o conceito de rede – aqui presente pelo uso da rede telefônica – como também pela ação colaborativa à distância, que dá forma a uma situação fisicamente presente e coletiva. Em relação à idéia de rede, alguns autores curiosamente referenciam ao fato de que o artista foi funcionário dos correios na Argélia (seu país de nascimento), o que o teria dado um conhecimento intuitivo e prático sobre relações dessa espécie.

Voltando-se a grande rede de computadores, temos Antoni Muntadas que é considerado um dos pais da web arte espanhola, atuando desde quando os artistas, que buscavam estabelecer uma “rede artística”, se utilizavam da Mail Art para tornar suas faturas artísticas circuláveis em amplo aspecto, transnacionalmente. Aliás, muitos dos artistas da arte postal migraram com o advento e popularização das redes computacionais, para sistemas como o Videotexto e mais tarde, para a Internet, pois além da difusão ampliada, as redes oferecem outras possibilidades como a instantaneidade de envio e resposta, além da instauração de percursos múltiplos do hipertexto, por exemplo. Muito mais do que simplesmente dispor uma imagem fixa num site – como é o que nós estamos mais acostumados a ver como “arte da internet” – os artistas passam a ver a Internet como canal para produções de caráter coletivo/colaborativo. Um dos exemplos mais evidentes dessa visão é seu trabalho The File Room de 1994, onde o artista propõe catalogar e disponibilizar várias ações de censura a trabalhos artísticos de diferentes meios e épocas – possibilitando também a contribuição de internautas para o enriquecimento do banco de dados. Com The File Room o artista propõe reconstruir uma história oficial e coletiva das artes e por conseqüência, emerge um espaço social e político.

É fato que hoje a rede passa a ser pensada num viés mais dinâmico, onde cada usuário é parte de uma entidade pulsante, viva e construtiva. São abertos espaços para trabalhos que lidam com a idéia de emergência – onde há a insurgência de padrões, cabendo ao artista explicitá-los – e ainda, com a idéia de mente global: a rede seria uma enorme entidade do nosso imaginário, propriedade viva do conhecimento humano. As considerações visionárias de ASCOTT (1997: 337) nos instigam a pensar neste sentido:

“A Internet é a infra-estrutura crua de uma consciência emergente, um cérebro global. A Net reforça o pensamento associativo, hipermediado, pensamento hiperlincado – o pensamento do artista. É a inteligência das redes neurais. Isto é o que eu chamo de hipercórtex.”

Chama-nos a atenção especialmente a visão antecipatória de Ascott neste texto – adiantando-se praticamente em uma década nas definições atuais de uma web colaborativa – popularmente chamada por Web 2.0. Este termo define sites que possibilitam a participação ativa dos visitantes oferecendo ferramentas de relacionamento ou manipulação ou ainda, formatos menos estáticos da informação. Essa nova condição não significa necessariamente uma mudança técnica como o termo pode sugerir e sim uma nova concepção de uso da rede que posiciona o antigo “leitor” da web em um ativo produtor/gerenciador de conteúdos, um indivíduo que não está apenas disposto a buscar informações como também em produzi-las. Quando então, temos uma coletividade em ação podemos intuir a um cérebro coletivo – onde emerge uma entidade viva e pulsante, fluindo permanentemente em rede.

Esse fluxo contínuo está presente em um dos trabalhos de Rui Torres, poeta e pesquisador português de poesia experimental, que produziu o trabalho Poesia Encontrada, juntamente com a colaboração de Jared Tarbel e Nuno F. Ferreira. A produção é inspirada em poema homônimo do escritor lusitano António Aragão, sendo apresentada como uma releitura. Mas consegue ir além, quando insere o tempo real em sua práxis. A poesia de Torres não está determinada de antemão: ela é um texto mutante que se alimenta das palavras presentes em sites noticiosos da própria rede Internet no instante em que é visitada. Utilizando-se do recurso RSS presente nestes sites, a cada novo acesso, o texto se refaz sob o signo do momento. É interessante pensar que essa tecnologia RSS foi pensada justamente para a manutenção de uma organização dentro do fluxo contínuo de informações na rede, quando o indivíduo opta por determinadas fontes e os sites escolhidos automaticamente enviam informação conforme ela nasce.

Torres, por sua vez, utiliza essa ferramenta para criar um espaço em que a informação perde o seu sentido objetivo e o RSS – anunciado pelos tecnoentusiastas como uma bússola no meio de tanta bagunça informacional – é justamente um agente do excesso e do exagero, ao mesmo tempo em que explicita o que inúmeras mentes estão digerindo naquele mesmo instante. Temos o tráfego informacional instaurado naquele momento: casual e momentâneo. Possibilita que nós tomemos o lugar de fascínio de certa onisciência deste cérebro global e suas incessantes sinapses. É por esse viés que temos trabalhos que necessariamente não mais consideram a rede como apenas povoada por indivíduos-leitores, entendendo-a como uma matriz criadora e matéria primeira.

Outro caso neste sentido é a instalação Listening Post (2001) de Mark Hansen e Ben Rubin, por exemplo, ganhadora do Prix ARS Eletronica em 2004, que possui pequenos leds eletrônicos que apresentam e proferem por voz, trechos de conversas de chats e outros espaços de convívio virtual como fóruns. Temos também as instalações de Diana Domingues e grupo Artecno, I´mito (2004) e Firmamento (2005), ambas apresentadas no Itaú Cultural de São Paulo respectivamente em 2004 e 2005, que realizam buscas em tempo real na Internet através de palavras-chave de personalidades e mitos contemporâneos. Os algoritmos destes trabalhos se apropriam de textos do ciberespaço e os apresenta no espaço expositivo. Curiosamente, estes trabalhos fazem uso da rede sem necessariamente estarem efetivamente disponíveis na web. Mas, especialmente esses trabalhos problematizam a rede enquanto um canal de sinapses que emanam de um consciente coletivo. A nova condição é não apenas estar na web, mas dar-lhe voz, efetivamente.

6. Algumas considerações

As reflexões até aqui buscaram relacionar contextos históricos e tecnológicos distintos em que especialmente a compreensão da rede como um simples repositório de dados – ao seu perfil popularizado nos anos 90 – passa a dar espaço para a idéia de uma entidade partilhada, viva, uma protagonista cada vez mais ativa e coletiva. Nesta nova condição, os três elementos apresentados – a telepresença, a crítica ao meios e a concepção de cérebro global – são pontos de contato entre esses diferentes contextos, tornando possível compreender a multiplicidade de movimentos nos quais se insere grande parte da produção artística da grande rede. Mas, ainda que as três condições conduzam-nos a entender que a rede representaria uma natural partilha, há que se observar que mais do que definir uma tendência sobre conteúdos da rede, estes elementos atuam especialmente no sentido de estabelecer uma linguagem que diferencia e/ou rearranja a web arte diante de outras utilizações do ciberespaço, enaltecendo suas especificidades.

 

BIBLIOGRAFIA

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Texto publicado originalmente na revista PORTOARTE - Revista do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, número 28, 2010.

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