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Sobre tempo e morte na rede
Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)
Tempus edax rerum
(Tempo devorador das coisas)
Ovídeo
Em 2002, através do site de busca Google,
podemos encontrar mais de 17 milhões de referências
à palavra tempo (time) e mais de 32 milhões de referências
à palavra morte (death) na rede Internet. Embora essa busca
textual seja destituída de qualquer sentido ou contexto
de uso das palavras, talvez ela nos sirva para pensar na permanente
recorrência desses dois conceitos, seja efetivamente na
existência humana, seja pelo uso figurado ou pela carga
simbólica. De qualquer forma, tempo e morte são
intrínsecos ao homem e de certo modo, intrínsecos
entre si.
Desde as primeiras incursões do homem na comunicação
à distância, aos primeiros adventos de locomoção
não-animal – como a locomotiva e o automóvel
mais explicitamente – existe a busca da transposição
de distâncias geográficas, onde pessoas e informação
devem chegar no seu destino no menor tempo possível, respeitados
os avanços tecnológicos de cada época. Se
no cotidiano, com a aglutinação da tecnologia por
meio de eletrodomésticos, o tempo poupado passa a ser sinônimo
de melhora na qualidade de vida do indivíduo, no campo
informacional, por sua vez, o surgimento dos meios eletroeletrônicos
proporciona não só a velocidade, mas avança
diretamente ao limite da instantaneidade (BOSI, 1995).
Nos meios eletroeletrônicos da nossa contemporaneidade,
temos a nítida experiência da instantaneidade, seja
pelo discurso dos meios de comunicação de massa
– que pregam “a notícia na hora que elas acontecem”,
ou “a vida real em tempo real” – ou pela proliferação
de câmeras ao vivo na rede Internet, ou ainda pela “agilidade”
com que os fatos jornalísticos são anexados a jornais
on-line na rede. De qualquer forma, a velocidade da informação,
especialmente na Internet, passa a ter cada vez mais importância,
não só no que diz respeito a grandes sites de notícias
como também para sites dos mais variados assuntos e interesses.
Há um envelhecimento da informação, que é
normalmente evidenciada na queda de acesso a sites que não
atualizam constantemente suas páginas.
O novo pode se tornar antigo em poucos meses. Uma interessante
metáfora a esse outro tempo dado no interior da rede é
vista em Cronofagia
(2002) de Kiko Goifman e Juradir Muller, onde foi criado um “relógio
web”. O envelhecimento e morte de uma imagem – localizada
no centro da página – são dados pela ação
conjunta de usuários: é necessário um determinado
número de cliques para a ação se consumir
de fato. O tempo de sobrevivência é dado pela própria
rede. É sobre este trabalho que vamos nos estender nas
próximas considerações.
3.1 Cronofagia na Bienal
Cronofagia foi um trabalho participante da 25ª Bienal de
São Paulo, que, por sua vez, assim como em 1998, estabeleceu
duas curadorias distintas na seleção e apresentação
dos trabalhos de web arte – ou net art, assim denominados
em 2002 – mas com um diferencial: na edição
de 2002, surge a idéia do núcleo de Net Art Brasil,
englobando a produção brasileira de arte para a
rede, com artistas como Gilbertto Prado (Desertesejo), Artur Matuck
(Literaterra/Landscript) e Diana Domingues (Ouroboros).
Sob a curadoria de Christine Mello, os autores de Cronofagia
trouxeram os referenciais poéticos de outros trabalhos
antecedentes como Jacks in Slow Motion: experience 02, com a participação
de Alberto Blumenschein, Emiliano Miranda e Silvia Laurentiz,
onde através de uma câmera conectada a rede Internet,
era possível aos visitantes da 24ª Bienal de São
Paulo visualizar os presidiários de uma cadeia fluminense.
O universo poético da dupla de artistas engloba situações
limítrofes, muitas vezes com alto impacto visual tratando
de conceitos viscerais como a violência, a sobrevivência
humana, a morte e a degradação física e moral.
Paralelamente à produção, em suportes digitais,
os artistas levam esse universo também para outros meios,
como o cinema, em produções como Morte Densa, em
que mostra histórias de assassinos-de-uma-morte-só,
mostrando antagonismos e paradoxos – relações
sempre presente em várias produções.
O acesso ao trabalho pode se dar diretamente quando se possui
o endereço do site ou indiretamente através da página
da 25ª Bienal, quando ao clicar no nome do trabalho, o visitante
terá uma nova janela do navegador aberta, sem menus (comandos
voltar, atualizar, parar e outros), possuindo somente a barra
padrão do sistema e os seus respectivos botões de
minimizar, maximizar e fechar. Na janela, encontra-se logo acima,
o nome do trabalho com as palavras-chave “violência,
tempo, deterioração, morte” que se mantêm
em ritmo contínuo de esvaecer/aparecer. Logo abaixo, apresenta-se
uma imagem de carne em decomposição, que ocupa uma
grande parte da janela. Mais abaixo ainda, há instruções
que incentivam a participação do usuário
através da frase “clique na imagem para disparar
o relógio web” e um link para outra página
com um texto de algumas linhas sobre as idéias contidas
no trabalho e créditos.
De todos os itens existentes na apresentação/composição
visual da página web, o que mais nos interessa é
a imagem de carne em decomposição que se encontra
ao centro, ocupando praticamente todo o campo visual – quando
visualizada em uma resolução
de 800x600 – da janela. Ao entrar no site, o visitante é
convidado a clicar sobre a imagem a fim de “disparar o relógio
web”, quando a ação é feita, a expectativa
de que algo de significativo iria acontecer, se desfaz: somente
uma linha horizontal atravessa verticalmente a imagem –
referenciando uma varredura – mas a imagem continua intacta.
Os autores utilizam no site um mecanismo que contabiliza cada
clique efetuado sob a imagem, somando os cliques de todos os visitantes.
Ao chegar a um determinado número de cliques – que
não é informado em nenhum
momento – efetuados por inúmeros visitantes juntos,
substitui-se a imagem até então disponível,
por outra que estará a mercê do mesmo mecanismo.
A título de curiosidade, podemos intuir que o número
necessário de cliques para a substituição-morte
da imagem seja elevado. O site foi acompanhado no período
do dia 08 de maio de 2002 a 20 de junho de 2002 e, durante este
período, apenas uma imagem foi substituída. Vale
lembrar que parte desse período compreendeu a Bienal, o
que teoricamente significa que muitas pessoas acessaram o site
no espaço expositivo e através da divulgação
do evento na mídia.
Bem passado – Dois
momentos do site de web arte Cronofagia (2002). A primeira
imagem acima estava presente no site em maio de 2002 e foi
substituída logo depois, no mês seguinte, pela
segunda imagem, no decorrer dos cliques dos visitantes.
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Um dado a ser levado em conta numa análise mais formal
é o fato de que as imagens participantes deste mecanismo
são ensaios fotográficos realizados pelos artistas,
verdadeiramente, com carne em estado
de putrefação, o que traz um caráter
evidentemente mórbido e degradante, condizente com o universo
poético em questão.
3.2 Antropofagia?
Ao começar a adentrar o universo poético do trabalho,
vale a pena localizar-se no contexto das Bienais Internacionais
de São Paulo – ao menos, nas últimas duas
edições, em 1998 e 2002 – que como se sabe,
partem sempre de fios condutores pré-determinados para
desenvolver relações entre os artistas participantes.
Em 1998, na 24ª edição, comemorando-se 70
anos do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, propõe-se
discutir uma visão modernista extremamente brasileira:
a antropofagia. Há uma intenção de desconstruir
uma visão eurocêntrica da arte, pautar o olhar estrangeiro
e trabalhar com a visão simbólica do canibalismo,
como a apropriação transcultural. O canibalismo
suscita ainda uma visão atroz, visceral, certamente induzida
pelos famosos relatos
de Hans Staden, sobre as práticas antropofágicas
dos índios brasileiros.
No diálogo destas questões, interessa-nos a questão
da carne enquanto matéria, como nas pinturas de Théodore
Géricault, em especial Cabeças cortadas (Têtes
coupés), 1818-19, presente no núcleo histórico
e como no trabalho do brasileiro Artur Barrio, no trabalho Livro
de carne, 1977-98, exposto no segmento “arte contemporânea
brasileira”, que consistia em um pedaço de carne
sob a forma de páginas de um livro aberto. Barrio
é um artista conhecido por seu interesse com as sobras,
sobretudo orgânicas, como nas suas “trouxas”
ensangüentadas, que eram espalhadas pelas cidades do Rio
de Janeiro e Belo Horizonte, de forte cunho político e
social, denunciando nos anos 70, a hedionda vida proporcionada
pela ditadura militar.
Arte e morte – A
relação da arte com a morte é tão
longa data quanto sua relação com a vida.
Inclusive, quem não se lembra que Leonardo da Vinci
preenchia suas noites dessecando cadáveres? O artista,
em meio a odores do corpo em decomposição,
realizava estudos de anatomia sob a forma de magníficos
desenhos. Aqui, temos também dois artistas –
referenciados no texto – Géricault acima, com
“Cabeças Cortadas” e Barrio com “Livro
de carne”, que em outros trabalhos lidam com o tema
de maneira incisiva. |
Já na 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, na
qual está inserido o trabalho Cronofagia, temos a questão
da metrópole e suas iconografias. Segundo o curador Alfons
Hug, as metrópoles definem substancialmente o perfil da
criação artística, diante da sua velocidade
e complexidade de seus processos. Indo mais a fundo, a curadora
Christine Mello, do núcleo de Net arte Brasil determinará
a relação de fluxos entre cidade e rede, os movimentos
imprevisíveis, os problemas do tempo e percurso:
"Ao problema do espaço na metrópole opõe-se
na rede o problema do tempo: como percorrer todas as informações
que interessam se o tempo necessário é maior do
que o que podemos dispor? Como indica Paul Virilio, trata-se de
um tempo desvinculado do tempo cronológico, caracterizado
por ações simultâneas, o tempo das mídias".(nota)
Porém, se partíssemos para considerações
formais em torno da matéria carne, localizaríamos
muitos pontos de confluências do trabalho Cronofagia com
as questões da antropofagia. A relação material/imaterial
que o trabalho se propõe induz a uma relação
antropofágica no sentido mais direto – do meio Internet
– num processo de tradução não só
imagética como do próprio sentido de degradação.
Induz a um meio que se alimenta da carne – mesmo que podre
– num processo coletivo de deglutição, assim
como nos Tupinambás.
Parte integrante da dissertação
de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas
no universo da rede Internet", realizada sob a orientação
do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre
em contato.
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