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2003

FÁBIO OLIVEIRA NUNES







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Sobre tempo e morte na rede

CONTINUAÇÃO


3.3 Tempo e morte: recorrências

Um dos documentários de Kiko Goifman, um dos artistas de Cronofagia é “33”, 2002. Extremamente heterodoxo e biográfico versa sobre a possibilidade do artista por meio de entrevistas com detetives particulares encontrar sua mãe biológica. Além de outras questões, como a precariedade dos profissionais e o voyeurismo, o trabalho centra-se na questão temporal em diversos aspectos: a princípio, “33” é a idade do artista no desenvolvimento deste trabalho que além de ser uma idade memorável para os cristãos, é também em 1933 que sua mãe adotiva nasceu. Segundo: o tempo é pragmático na produção do trabalho, já que iniciados 33 dias de busca , terminam as filmagens do documentário. O tempo como imperativo seja enquanto passado, seja enquanto passagem.

A marca da idade – O filme-documentário 33 é um dos mais interessantes trabalhos de Kiko Goifman onde mostra uma busca em primeira pessoa de sua mãe biológica num documentário com clima de filme noir. Nos seus 33 anos, o artista ocupa 33 dias nessa produção. Enquanto se passam os dias pré-determinados, o artista contava com o contato de internautas que acompanhavam seu diário on-line, além das opiniões, várias vezes curiosas, de detetives particulares. Acima, algumas imagens do filme.

Um outro trabalho dos artistas, Morte Densa, é uma fatura intermídia que agrupa um documentário em longa-metragem, um livro, uma vídeo-instalação e web arte. Estabelecem-se conexões que partem de um mesmo princípio: os assassinos-de-uma-morte-só, pessoas que não tinham a intenção dolosa de matar. A maior parte desse tipo de assassinato acontece com pessoas próximas, num momento de cólera que leva à morte. Surgem paradoxos nas entrevistas, como a culpa e a legitimação do ato. As relações de tempo no filme – que certamente migram para alguns dos outros meios – segundo GOIFMAN (2002:90):

"O primeiro ponto deste projeto que se associa a um questionamento proposto pela noção de tempo se relaciona às imagens que serão utilizadas. Não estaremos, em nenhum momento, efetuando reconstituições dos crimes. Ao contrário, a situação é de uma metáfora imagética proporcionada por um dado objetivo e temporal: domingo é o dia de maior ocorrência de homicídios cometidos por 'pessoas comuns'".

É certo que as relações poéticas dos documentários com o trabalho de web arte em questão são evidentes. Mas ainda no que se diz respeito ao tempo, há uma propriedade interessante em Cronofagia a ser discutida. É possível estabelecer uma distinção entre a assimilação do tempo proposto e uma construção colaborativa do tempo.

A televisão e o cinema nas suas formas mais comerciais e tradicionais tornam possível somente a assimilação de tempo previamente programado. O espectador é um sujeito-paciente à mercê de um tempo imposto e subjetivamente aceito, seja no momento em que se adentra uma sala de projeção, seja ao permanecer no canal de TV. Não se trata da passividade ou falta de interatividade: ao iniciar um filme ou um programa de TV, o tempo de existência do filme ou programa enquanto evento é determinado pelo exibidor ou criador. Já em Cronofagia, o visitante é o agente – coletivo – do tempo. É ele que determina a existência da imagem exibida, sua duração e seu fim.

3.4 Coletividade e participação

Há vários trabalhos de web arte que estabelecem espaços de colaboração coletiva, como o site Graphic Jam dos artistas Andy Deck e Mark Napier. Este site, off-line há alguns anos, possibilitava que os visitantes estabelecem um espaço de colaboração criativa: a partir de uma tela e “pincéis”, era possível fazer interferências gráficas, desenhos, rabiscos. Essas interferências eram realizadas sobre interferências de visitantes anteriores, num processo de constante sobreposição das garatujas ali adicionadas. Além disso, se dois ou mais internautas conectassem no site ao mesmo tempo era possível interferir um no desenho que o outro estivesse fazendo. Estabelece-se, portanto, uma criação coletiva. Assim como em Cronofagia, o trabalho existe em função da participação do visitante, num processo contínuo. Sobre a participação coletiva em trabalhos em rede, PRADO (1997a) define:

"O participante está inserido duplamente como um de seus elementos ativos: individualmente como “mestre-temporário” da situação e enquanto co-autor num sistema participativo também com certos graus de liberdade e de possibilidades. A partir do momento que o interventor se desloca em cada ponto da rede, ele leva consigo todos os outros. Ele faz valer suas intervenções até o próximo contato, a partir do qual ele se torna espectador sem nenhum poder de ação, mas como um 'fomentador' da situação que ele iniciou. Este encadeamento de transformações é ligado inicialmente ao processo antes de estar ligado ao produto visual e/ou sonoro. É todo um imaginário social e artístico que se apresenta e está em expansão e do qual dificilmente podemos separar as participações individuais".

Nunca te vi, sempre criei – Ao se falar em colaboração, temos o trabalho MOONE de Gilbertto Prado, realizado em 1992 durante a IX Documenta de Kassel. Aqui, o artista disponibilizava através de uma rede digital (ISDN) uma tela partilhada entre dois visitantes: um localizado em Paris (França) e outro em Kassel (Alemanha). Em tempo real, os participantes fisicamente distantes e eventualmente desconhecidos, dispunham de ferramentas de desenho e elaboravam composições em conjunto. Nas imagens acima, respectivamente, a tela de abertura e algumas das imagens produzidas em colaboração.

Com base nestas considerações, podemos estabelecer duas diferenças fundamentais entre Graphic Jam e Cronofagia, embora ambos dependam da participação coletiva. A primeira diz respeito ao grau de possibilidades de ação: enquanto Graphic Jam possibilita diversos tamanhos e tipos de pincéis, cores, composições, tornando impossível prever o resultado da interação do participante, por outro lado, Cronofagia, restringe toda a participação a um clique sobre uma imagem e o resultado dessa participação é certamente previsível: a morte da imagem. A segunda diferença diz respeito ao processo: no trabalho dos artistas Deck e Napier, o participante acompanha visualmente a sua participação. E pode, até determinado momento, identificar sua colaboração. Por outro lado, no trabalho da dupla Goifman e Müller, o processo da coletividade é oculto, invisível aos olhos de cada elemento da coletividade.

Assim como na nossa existência, o tempo passa sem que se perceba.

Parte integrante da dissertação de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas no universo da rede Internet", realizada sob a orientação do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre em contato.

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