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2022

FÁBIO OLIVEIRA NUNES







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Web arte no Brasil em tempos pandêmicos

Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)

Este artigo é baseado em um levantamento inicial acerca de trabalhos de arte e tecnologia criados por artistas brasileiros para a Internet durante a pandemia de COVID-19, entre os anos de 2020 e 2021, buscando contextualizá-los a partir dos campos de significações, especificidades técnicas e conceituais deste meio (NUNES, 2010; 2012) e das circunstâncias geradas a partir da necessidade de isolamento social. Podemos abordar este conjunto de obras brasileiras em web arte a partir de três pontos: dos trabalhos que dialogam diretamente com a crise sanitária, dos trabalhos baseados em mundos virtuais e das possibilidades em redes sociais da Internet. Antes da crise sanitária, esta produção tinha perdido boa parte do seu protagonismo; a pandemia, por sua vez, reacende não só a pertinência desta produção artística, mas também a necessidade de sua preservação.


Introdução
 
Com a pandemia de COVID-19, o mundo da cultura migrou abruptamente para a rede mundial de computadores – a Internet – pela necessidade de isolamento social. Assim como em outras áreas, os espaços físicos – museus, teatros, galerias, cinemas, centro culturais – foram fechados e a Internet tornou-se o principal canal entre manifestações artísticas e público. Dispor arte às pessoas, ainda que na Internet, da forma que fosse, seja em postagens em redes sociais, vídeos gravados, transmissões ao vivo, sites da Internet, ambientes virtuais, entre outras possibilidades, foi fundamental para que o sofrimento diante da crise sanitária fosse amenizado. O mundo da cultura foi obrigado a pensar na Internet e suas potencialidades para a difusão artística.

Bem, muitos artistas trouxeram suas criações para a Internet com o propósito de divulgar obras que existiam em outros suportes, linguagens ou situações anteriores (como pinturas, desenhos, instalações etc.) trazendo registros – fotográficos ou videográficos. Evidentemente, a divulgação de arte através da Internet tem sido de fundamental importância para artistas, instituições, pesquisadores, público e mercado das artes, especialmente enquanto os espaços culturais mantiveram fechados. Outros criadores, por outro lado, seguiram por um caminho mais experimental e audacioso, compreendendo as especificidades da Internet enquanto parte intrínseca da obra a ser exibida. Este caminho dialoga com a produção em arte e tecnologia que historicamente se ocupa dos campos de significações e especificidades técnicas e conceituais deste meio (NUNES, 2010): a chamada web arte (também referenciada por net.art e internet art Os três termos possuem genealogias diferentes, mas são empregados para definir um mesmo campo de produção artística. Ainda que em sua origem pressupunha uma produção baseada na World Wide Web – parte da Internet acessível por programas navegadores (como os atualmente populares Mozilla Firefox e Google Chrome) – o termo web arte é usado neste trabalho por ser mais recorrente nas primeiras iniciativas brasileiras. ). Para a aproximação deste universo de criações, podemos citar a ainda pertinente distinção de Gilbertto Prado, em 1997, entre “sites de divulgação”, espaços nos quais o “caráter de informação e de divulgação são prioritários e remetem a todo tempo à obra original” (PRADO, 1997) e “sites de realização”, quando predomina a realização de uma obra em si, criada para ser especialmente fruída através da própria rede digital. Neste sentido, há algumas condições recorrentes:

No acesso a trabalhos de web arte, podemos enumerar algumas condições recorrentes: efemeridade, visto que a tecnologia permanece em caráter de atualização constante e deste modo os trabalhos estão sujeitos a novos elementos em sua visualização, tais como novos browsers ou plug-ins; recepção técnica de baixo controle, ou seja, a recepção pode variar conforme as especificidades de cada equipamento que se conecta ao trabalho, tornando-se algumas vezes impossível determinar com precisão a visualização e funcionamento em cada computador visitante; a necessidade de  repertório computacional, visto que é fundamental que seu visitante domine com plenitude o universo de interfaces inerentes à obra – sabendo, por exemplo, como clicar, arrastar ou acessar um endereço web, visto que estas ações comuns aqui são indispensáveis. Há que se observar também que estes trabalhos operam em alcance transnacional – podendo focar em públicos mais amplos e mensagens potencialmente universais. (NUNES, 2012)

Invasão brasileira no Louvre – Imagem do trabalho de Paulo Laurentiz enviado por fax para o Museu do Louvre durante a ação L´Oeuvre du Louvre durante o carnaval do ano de 1990.

Historicamente, as primeiras obras em web arte no Brasil surgem no contexto da abertura comercial da Internet, nos anos 1990 A rede mundial de computadores – a Internet – é aberta ao público em geral no Brasil em 1994. Antes disso, desde 1988, exclusivamente instituições de pesquisa tinham acesso à Internet no país. ; entretanto, as preocupações da web arte são antecipadas por artistas brasileiros que buscam regimes de comunicação com o uso de tecnologias digitais na criação ou fruição de obras, fazendo isso com diferentes estruturas eletrônicas de comunicação que permitiram o intercâmbio de imagens, sons e textos ou ações à distância, entre as quais podemos citar algumas incursões como: as iniciativas curatoriais de Julio Plaza com o uso da tecnologia de Videotexto Videotexto foi uma tecnologia antecessora da prática da Internet, sendo um sistema digital para visualização de informações em monitor de vídeo ou televisor, em regra, em forma de textos transmitidos por linha telefônica. No Brasil, o Videotexto iniciou-se nos anos 1980, tendo sido disponibilizado por companhias telefônicas, que ofereciam serviços de notícias, bate-papo, previsão do tempo, entre outros. na mostra Arte pelo telefone: Videotexto em 1982 no Museu da Imagem e do Som, São Paulo, e no núcleo Arte e Videotexto na 17ª Bienal de São Paulo, em 1983, envolvendo dezenas de artistas brasileiros; Ornitorrinco , desenvolvida a partir de 1989 por Eduardo Kac, na qual um robô que é controlado remotamente pelo público através de linha telefônica; a ação L´Oeuvre du Louvre capitaneada por Paulo Laurentiz, com a participação de diferentes artistas como Anna Barros, Lúcio Kume, Mario Ishikawa, Milton Sogabe e Regina Silveira, em uma metafórica invasão do Museu do Louvre de Paris a partir da transmissão via aparelho de fax Ainda bastante utilizados em alguns países, os aparelhos de fax são dispositivos capazes de reproduzir páginas impressas transmitidas através de linha telefônica. no carnaval de 1990; a ação Intercities: São Paulo/Pittsburgh – intercâmbio de imagens via Slow Scan TVSlow Scan TV ou televisão de varredura lenta é um dispositivo de transmissão de imagens fixas à distância, podendo utilizar ondas de rádio para este fim. entre São Paulo e Pittsburgh em 1988, sob a coordenação brasileira de Artur Matuck e Paulo Laurentiz com a participação do projeto Still Life/Alive de Carlos Fadon Vicente; ou ainda, a obra Moone: La Face Cachée de la Lune de Gilbertto Prado de 1992, na qual o público criava imagens compartilhadas à distância, entre Paris (França) e Kassel (Alemanha) . Este rápido apanhado de iniciativas com artistas brasileiros, entre outras várias realizadas no período, antecipa preocupações presentes nas obras pensadas para a Internet, como as ideias de colaboração, telepresença, simultaneidade, conectividade entre pessoas, além do desejo pela experimentação tecnológica e da transposição de distâncias físicas.

Pioneiros da web arte no Brasil – Acima, vídeo da série Falas da Web Arte no Brasil com depoimento da artista Tania Fraga sobre Netlung, obra criada em 1996 por Diana Domingues, Gilbertto Prado, Suzete Venturelli e Tania Fraga.

Nos primeiros anos da Internet, podemos citar entre os trabalhos de web arte criados por artistas brasileiros: Netlung, criado em 1996 por Diana Domingues, Gilbertto Prado, Suzete Venturelli e Tânia fraga, proposição que apresenta quatro percursos explorando dimensões sensoriais; Lands Beyond, criado em 1997 por Celso Reeks e Thiago Boud’hors, que parte de territórios imaginários, da literatura para a trazer a própria rede como um território intangível; Aller – Antologia Labiríntica, criado em 1997 por André Vallias, uma série de incursões em literatura digital na Internet; Ywebarte, reunião de trabalhos do grupo homônimo Em 2005, com nova composição de participantes, o grupo e o projeto passam a se chamar Taru. capixaba realizada em 1998; Stultifera Navis, criado em 1999 por Daniel Sêda, narrativa hipertextual que recorre a uma mistura poética de temporalidades distintas; Econ, criado em 1999 por Silvia Laurentiz, criação tridimensional inspirada na poesia de E.M. de Melo e Castro; Id. RG 76439-A, criado em 1999 por Daniela Kutschat, ambiente tridimensional com menções a códigos e identidades; Labweb, criado em 1999 por Lucia Leão, explora o potencial de labirintos modelados tridimensionalmente; Movemaker, criado em 1999 por Rejane Cantoni, criação tridimensional com menções à op art, propiciando variações conforme o visitante interage no ambiente.

Pioneiros da web arte no Brasil – Acima, vídeo da série BEM WEB ART com a apresentação da obra Lands Beyond de Celso Reeks e Thiago Boud'hors, um dos trabalhos históricos da produção brasileira para a Internet.

Ainda nos anos 1990, a web arte protagonizou mostras em instituições brasileiras, como a mostra Web Art, realizada em 1997 no Instituto Itaú Cultural junto à programação Arte e Tecnologia, com seleções de obras Conforme texto de Ricardo Anderáos (1997), no intuito de repensar “o próprio conceito de artista” a instituição convidou profissionais de diferentes áreas a expor suas criações na mostra: “convidamos profissionais brasileiros das áreas de artes plásticas, design gráfico, vídeo e webmasters a mostrar trabalhos artísticos desenvolvidos especialmente para a Internet”. Uma cópia do texto de apresentação da mostra e lista de trabalhos selecionados (atualmente não disponíveis) está disponível em: http://legacy.icnetworks.org/extranet/arte_tecnologia/web_art.htm. Acesso em 06 de setembro de 2021. por Ricardo Anderáos e Arlindo Machado, trazendo como convidados brasileiros os criadores José Resende, Rui Amaral, Siron Franco, Iole de Freitas, Lenara Verle e Baravelli . Dos seis trabalhos presentes no núcleo brasileiro da mostra, três obras estavam vinculadas a uma exposição realizada em uma outra instituição, localizada a poucos metros da sede do Itaú Cultural em São Paulo: o Museu Casa das Rosas Desde 2004, a Casa das Rosas mudou seu foco de atuação, tornando-se um museu literário, com nova gestão e designação: “Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura”., que foi um centro pioneiro de difusão de obras experimentais em tecnologias digitais sob direção de José Roberto Aguilar e coordenação de novas mídias do artista Lucas Bambozzi. Além de diversas exposições sobre arte na Internet em seu site institucional, em 1997 a Casa das Rosas realizou o primeiro concurso brasileiro de web arte, com participação de artistas brasileiros e de outros países. Até aqui, todas as considerações históricas sobre primeiras iniciativas em web arte no Brasil não esgotam a discussão sobre o tema e visam, além de instigar pesquisas mais detidas sobre estas questões, apresentar a vigência deste universo de criação por criadores e instituições.

O auge da produção de web arte no Brasil ocorre em meados do ano 2000 (NUNES, 2005), no decorrer da primeira década do século. Do começo do século para cá, as criações pensadas para a Internet perderam boa parte de seu protagonismo, inclusive nas iniciativas institucionais no país. Até que, a partir de 2020, o mundo passa a atravessar tempos pandêmicos. A Internet torna-se o principal canal entre produções artísticas e público. Neste contexto, logo nos primeiros meses da crise sanitária no Brasil, a pesquisadora e artista Giselle Beiguelman justamente atenta para a escassez de projetos artísticos para a Internet, sobretudo no Brasil, uma situação visível na pandemia:

A compreensão da internet para além de um repositório de links e o reconhecimento de sua produção artística são fatores determinantes. Mas investimento em pesquisa e criação são decisivos. Dito de outra forma — instituições, por favor, despendurem-se das redes sociais, contratem designers, comissionem artistas e paguem um programador.(BEIGUELMAN, 2020)

A pandemia escancarou a ausência de iniciativas institucionais em um momento em que toda a produção artística passou a depender prioritariamente da Internet. Mas, especialmente, induziu a novos olhares sobre as possibilidades artísticas na rede fazendo emergir, inclusive entre brasileiros, como bem aponta Maria Amélia Bulhões (2020), “uma nova visibilidade a esta produção”. Este texto, então, apresenta um levantamento inicial de obras de artistas brasileiros desenvolvidas para a Internet no decorrer da pandemia, apontando especialmente para três pontos: dos trabalhos que dialogam diretamente com a pandemia, dos trabalhos baseados em mundos virtuais e das possibilidades em redes sociais da Internet.

A pandemia como tema


Uma das primeiras obras em web arte a se dedicar diretamente ao tema da pandemia, Coronário, criada por Giselle Beiguelman em 2020, dedica-se a “experiência cultural do coronavírus atentando para seu impacto na linguagem e para a naturalização da vigilância no cotidiano”, conforme descrição no site da artista http://www.desvirtual.com/portfolio/coronario-coronary/ . Acesso em 01 de setembro de 2021.. O trabalho parte da emergência de um novo léxico a partir da experiência cotidiana em tempos pandêmicos: o uso de palavras como álcool gel, máscara, home office, lockdown, isolamento social, entre outras tantas, refletem um novo cenário da nossa sobrevivência no planeta. Coronário se apresenta, então, como uma página da Internet que possui uma espécie de nuvem de tags Nuvem de tags é um tipo de composição visual exibida em sites da Internet trazendo palavras (utilizadas em outras páginas da Internet) e algum tipo de hierarquização entre estes termos, baseada, por exemplo, em quantidade de recorrências. Este tipo de composição permite visualizar assuntos mais relevantes em um site ou em vários domínios da Internet. com base em termos mensurados pelo índice de tendências de busca do Google, entre os meses de março e abril de 2020, período de início do isolamento social no Brasil. Esta nuvem de tags consequentemente evidencia o rastreamento digital das preocupações iniciais das pessoas sobre a pandemia.

É interessante notar que Coronário é um trabalho que reflete uma primeira atmosfera que o isolamento social gera: a novidade cultural. Ora, nas primeiras semanas, o número ainda pouco expressivo de casos e de mortes por COVID-19 no país e a dificuldade de vislumbrar o quanto a pandemia viria a ser extensa e exaustiva, nos permitiria exercícios otimistas sobre a experiência cultural e social deste período. Entretanto, sabemos que o cenário se torna muito pior no decorrer dos meses, com uma escalada de tensões sanitárias, políticas e econômicas no país, com centenas de milhares de mortos.

Exibida em um momento posterior da pandemia, a obra InMemoriam Obra disponível em http://www2.eca.usp.br/realidades/inmemoriam/. Acesso em 06 de setembro de 2021. do Grupo Realidades Integrantes do grupo na realização do trabalho: Bruna Mayer, Clayton Policarpo, Dario Vargas, Felipe Mamone, Lívia Gabbai, Letícia Brasil, Loren Bergantini, Luca Ribeiro, Miguel Alonso, Paula Perissinotto, Sergio Venancio, Silvia Laurentiz. O Grupo Realidades é sediado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo., criada em 2021, confronta diretamente a tragédia de centenas de milhares de mortos da pandemia de COVID-19. Trata-se de uma obra que homenageia as vítimas da doença. O trabalho apresenta um trecho da Constituição Federal Brasileira, em especial, a primeira página da seção “Direitos e garantias fundamentais”, dedicada a sistematizar as noções básicas e centrais que regulam a vida social, política e jurídica dos cidadãos. No primeiro artigo desta seção está a declaração de que todos são iguais perante a lei e, ainda, que o direito à vida será garantido a todos os brasileiros. Junto a este trecho da Constituição, no alto da tela, há um botão deslizante que pode ser conduzido a partir da data atual Em 21 de outubro de 2022, o Brasil somou 687.544 mortes por COVID-19, conforme balanço do Consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde. até o dia 17 de março de 2020, data oficial do falecimento da primeira vítima por COVID-19 no país . Conforme o botão é deslizado data após data, a imagem do trecho da Constituição gradualmente se despedaça – cada parte despedaçada se refere a uma vítima fatal dos números oficiais do dia.

InMemoriam – Acima, vídeo da série BEM WEB ART com a apresentação da obra InMemoriam do Grupo Realidades (ECA-USP).

O trabalho suscita uma reflexão: estamos diante de uma tragédia que não é somente sanitária, mas também político-institucional; o direito à vida previsto na lei suprema do país não está sendo devidamente garantido pelos gestores da crise. Um exemplo disso é o fato de o país alcançar o segundo maior contingente de vítimas fatais no planeta, em números totais, conforme dados de setembro de 2021 .

Mas, indo além, ainda se utilize de dados oficiais – o trabalho utiliza o DataSUS DataSUS é o sistema de informática do Sistema Único de Saúde do Brasil. como fonte dos dados visualizáveis – uma outra camada de leitura da obra também se apresenta a partir de um contexto dado: alimentada por redes de desinformação “O termo desinformação se refere, de forma ampla, a conteúdos que são falsos e têm impactos potencialmente negativos. Estes impactos podem ter consequências fatais durante uma pandemia” (POSETTI; BONTCHEVA, 2020, p.2). , uma parcela da população brasileira questiona justamente o número de mortos por COVID-19. Os dados presentes no trabalho são verdades inconvenientes às autoridades que não cumpriram o seu papel durante o caos sanitário, tornando-os números supostamente apócrifos; o ato de negar os dados oficiais é emblemático do despedaçar das próprias instituições – inclusive as científicas – que estão sob ameaça tal como os preceitos constitucionais.

 

 

Publicado originalmente em:
NUNES, Fabio Oliveira. Web arte no Brasil em tempos pandêmicos. Texto Digital, Florianópolis, v. 18, n. 1, p. 5-22, 2022. https://doi.org/10.5007/1807-9288.2022.e83914 .


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