Web arte no Brasil em tempos pandêmicos (CONTINUAÇÃO)
Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)
Ambientes virtuais
A impossibilidade do encontro físico estimulou artistas a buscarem tecnologias que pudessem simular a presença em outros mundos. Várias iniciativas recorreram ao uso de ambientes virtuais. Estes espaços se relacionam diretamente com o contexto dos populares jogos eletrônicos – que têm balizado as expectativas e experiências em torno de narrativas em mundos simulados – e com a ideia de realidade virtual
Termo criado por Ivan Sutherland, que definia realidade virtual como um mundo simulado, gerado por computador, no qual o usuário pode navegar em tempo real como se estivesse movendo em um espaço tridimensional real (PEARCE,1997, p.105). . Curiosamente, em grande parte das menções a realidade virtual no cinema, enquanto temática em filmes de ficção científica, a realidade simulada representa uma fuga (ACQUARONE, 2018) da realidade física habitada por seus personagens. Isso é bastante proeminente em filmes como Matrix
Matrix. (The Matrix). EUA,1999. Direção: Andy Wachowski, Larry Wachowski. e Jogador nº1
Jogador nº1. (Ready Player One). EUA, 2018. Direção: Steven Spielberg. , para citar duas produções de diferentes décadas. Na atualidade, diante de uma pandemia em curso, na qual todos os deslocamentos estão restritos e o risco de morte está presente, a escolha por mundos virtuais não é exclusivamente técnica, mas da necessidade tácita de habitar circunstancialmente outras realidades – muito mais reconfortantes do que o mundo presente.
No Brasil, ambientes baseados em realidade virtual foram utilizados para a realização de alguns eventos sobre arte e tecnologia durante a pandemia. Podemos citar o Festival Perfídia
https://www.plataformaperfidia.com/perfidia-online-2021 . Acesso em 24 de abril de 2021. – Festival de performance e novas mídias, realizado em 2021, baseado na emergente plataforma Mozilla Hubs
Mozilla Hubs é um projeto de código aberto para criação de salas em realidade virtual baseadas na web, sem a necessidade de download de aplicativos para construção e navegação dos ambientes. Site do projeto: https://hubs.mozilla.com/ . Acesso em 05 de setembro de 2021., permitindo que o público acessasse obras digitais, palestras ao vivo e que também pudesse conversar por voz, a partir de um avatar
No contexto da realidade virtual, avatar é um cibercorpo, uma representação gráfica-identitária dos participantes dos mundos virtuais.. Também em 2021, foi realizada a mostra AIR
https://www.ufsm.br/laboratorios/labinter/arte-transmissao-tecnologia/ . Acesso em 05 de setembro de 2021. – Mostra de Arte e Ambientes Imersivos e Interativos em rede , organizada pelo Laboratório Interdisciplinar Interativo (LABINTER) da Universidade Federal de Santa Maria, baseado na plataforma Sansar
Sansar é uma plataforma de realidade virtual para criação de ambientes multiusuário. Disponível em: https://www.sansar.com/ .. Estas duas iniciativas contaram com a exibição de versões virtuais – utilizando salas de exposição e objetos 3D – de obras artísticas em seus ambientes multiusuário.
Focando nas produções artísticas criadas para a Internet sob a forma de ambientes virtuais, podemos citar a iniciativa do coletivo 1 Mulher por M2
Lê-se “uma mulher por metro quadrado”. O coletivo, nesta obra, é composto por Adriana Bertini, Adriana Cavallaro, Ana Roberta Lima, Bia Parreiras, Cami Onuki, Carla Venusa, Fernanda Klee, Fulvia Molina, Heloisa Ramalho, Iara Venanzi, Karen Caetano, Laura Corre^a, Lucre´cia Couso, Lynn Carone, Marcia Gadioli, Melissa Haidar, Paula Marina, Sylvia Diez e Tina Leme Scott. “Pontos de fuga” conta com programação por Matheus "stalkid" Ribeiro, além da produção da exposição interativa, música, coordenação de programação e game design por Morgana Taro., que cria uma exposição baseada em um ambiente virtual, chamada Pontos de fuga
A obra pode ser acessada através do site https://www.1mulherporm2.com/ . Acesso em 05 de setembro de 2021. Um vídeo de navegação na exposição está disponível em: https://youtu.be/axkYDukmwu4 . Acesso em 06 de setembro de 2021.. O nome do coletivo se refere diretamente a proposta-método do grupo que é organizar exposições nas quais cada artista ocupa um metro quadrado físico, mantendo a particularidade da poética de cada artista; traz também a necessidade da presença feminina em todos os espaços da sociedade. O coletivo realizou exposições coletivas em espaços físicos partindo desta proposta-método, até que com a necessidade de isolamento social, as criações migram para o contexto digital.
Perspectivas virtuais –
Acima, vídeo da série BEM WEB ART com a apresentação de Pontos de Fuga do coletivo 1 Mulher por M2.
O termo ponto de fuga, por sua vez, que dá nome à iniciativa, é um elemento presente nas representações visuais bidimensionais a sugerir tridimensionalidade; na proposta este termo pode se referir ao processo de criação, já que cada imagem bidimensional transforma-se em inspiração para um ambiente tridimensional a ser explorado, expandindo leituras e conceitos das imagens originais. Mas, também pode se referir à essência da realidade virtual no campo das representações, tal como Oliver Grau (2007) a inscrever historicamente este campo de criação digital junto às pinturas que buscavam a ilusão através do domínio da perspectiva. Ainda sobre o título, podemos subjetivar a palavra “fuga” nos termos que já comentamos algumas linhas atrás: da ideia da realidade virtual como forma de abandonar circunstancialmente uma realidade pouco confortante, no caso, a pandemia.
Saída! –
Acima, vídeo da série BEM WEB ART com a apresentação da obra Saída de Arthur Moura Campos.
Também com um título sugestivo para escapar de uma situação dada, temos a obra Saída
O projeto foi realizado em parceria com a empresa DIVE realities. O ambiente virtual está hospedado em um plataforma para games chamada Simmer.io . Para acessar: https://www.diverealities.com/saida-game . Acesso em 06 de setembro de 2021. Um vídeo de navegação na obra está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QXN9ls25dNk&t=31s . de Arthur Moura Campos, criada em 2021, enquanto um ambiente virtual que se propõe a ser uma espécie de prédio-livro em poesia expandida, uma construção digital arquitetônica a abrigar poemas do autor. A criação foi concebida antes da pandemia, elaborada em 2019 em projeto de conclusão de curso da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, somando design, arquitetura e poesia. O autor concebeu o edifício, escreveu os poemas a habitarem esse espaço virtual e publicou um livro com perspectivas do edifício. O prédio virtual é concebido enquanto poema, conforme depoimento em seu trabalho de conclusão:
Um cubo branco com um cilindro vazado em seu interior, a palavra “SAÍDA” escrita em sua fachada de forma que o “Í” maiúsculo fosse uma porta de entrada (...). Essa foi a ideia inicial do prédio: a contradição entre letra e porta, saída e entrada, foi o primeiro motivo que desencadeou esse experimento poético, arquitetônico e gráfico. (CAMPOS; MAZZILLI, 2019, p.36)
A partir deste prédio-poema, o autor passou a incluir textos poéticos – poesias e textos em prosa – eventualmente com voz, com diferentes composições visuais, animações, criando diversas ambientações, considerando elementos da arquitetura, como degraus da escada, paredes, rampa, sacadas. Suas criações em poesia referenciam a herança verbivocovisual
Conforme o célebre Plano piloto para poesia concreta, publicado em 1958 por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos (2006, p. 216-217): “O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual” – que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra. Com o poema concreto ocorre o fenômeno da metacomunicação; coincidência e simultaneidade da comunicação verbal e não-verbal, coma nota de que se trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo não da usual comunicação de mensagens”.
da histórica poesia concreta, considerando a indissociabilidade das dimensões verbais, sonoras e visuais das palavras – o “olhoouvido ouvê”, como sintetizaria Décio Pignatari (2006, p.69), em manifesto de 1956. E, por extensão, Saída está em diálogo com a poesia intersemiótica
KHOURI (1997, p. 01), num breve texto chamado De olho na poesia, apresenta a poesia como arte intersemiótica justamente pelo seu envolvimento – explícito ou não – com outras linguagens, apontando a insuficiência do termo “poesia visual”. De fato, o termo permite definir com mais precisão as criações que transitam entre os meios, como é o caso da produção de Arthur Moura Campos.
– a transitar entre diferentes meios.
Também em proximidade com o universo da literatura sob um ambiente virtual, há a obra Oneirografia
O projeto foi realizado com a colaboração de Felipe Mariani e está disponível em https://www.andreacatropa.com/oneirografia . Acesso em 06 de setembro de 2021. Além disso, um vídeo de navegação na obra está disponível no Observatório da Literatura Digital Brasileira em https://www.youtube.com/watch?v=ExNjW9lwf1k . Acesso em 06 de setembro de 2021.
de Andréa Catrópa, na qual a poeta, pesquisadora e artista convidará seus visitantes a escreverem sobre os seus sonhos, a serem criados ou simulados. A autora propõe um sistema que posiciona o visitante enquanto escritor-participante, a exercitar a sua subjetividade na descrição de suas imagens mentais. Em um segundo momento, o visitante escolhe a natureza da sua simulação: sonho ou pesadelo. Em seguida, apresenta-se um ambiente onírico explorável ao visitante, que reserva um desfecho: imagens e palavras escolhidas geram uma espécie de postal onírico, uma recordação do sonho. O sistema, ao final, resgata termos utilizados pelo visitante e, com base em um banco de imagens, cria postais com imagens e textos evocativos dos sonhos em questão.
Realidade onírica –
Acima, vídeo da série BEM WEB ART com a apresentação da obra Oneirografia de Andréa Catropa.
No processo de criação da obra, a autora relata que o estado de exceção que a pandemia causou, sobretudo devido aos problemas crescentes no âmbito da saúde, da economia e das condições sociais, contribuiu para o questionamento sobre a validade de se criar uma obra voltada para uma experiência particular. A doença colocou em questão alguns valores definidores do dia-a-dia dos ocidentais, como o narcisismo e o individualismo exacerbado. A situação também enfatizou a vulnerabilidade humana, a lembrar da contingência animal de depender de um corpo cujo funcionamento perdura por um tempo finito. (CATRÓPA, 2021). Com o decorrer da crise sanitária percebeu-se uma sintonia comum entre os sonhadores, já que as situações decorrentes da pandemia impactaram irrestritamente os sonhos das pessoas em diferentes partes do mundo, conforme estudos científicos realizados no período; percebe-se que as pessoas tiveram recorrências de emoções negativas, ansiedade, tristeza, raiva, referências a processos biológicos, saúde e morte em seus sonhos
A pesquisadora e psicóloga estadunidense Deirdre Barrett (2020) observou esta prevalência a partir da coleta de informações a partir de 2.888 sonhadores de diferentes países. Entre emoções e assuntos sonhados, a pesquisadora conta que homens e mulheres tinham duas vezes e meia mais ansiedade, duas vezes a referência à doença e quatro vezes a referência à morte do que os sonhos captados antes da pandemia (LAMOTTE, 2021).
. Este contexto está presente na concepção da obra, que dialoga com as emoções intensas destes fenômenos psíquicos, ressignificando-os poeticamente.
Redes sociais
Durante a pandemia, muitos criadores optaram por utilizar as redes sociais como ambiente para as suas criações. No texto “Poetas encontram terreno fértil no Instagram, mas sofrem para romper nicho”, publicado em 2021, o pesquisador, músico e poeta Juli Manzi analisa o contexto de criadores brasileiros que incorporam “o concretismo à era virtual das redes sociais” (MANZI, 2021). Com uma abordagem bastante pertinente para estes tempos, o texto aponta a significativa difusão da poesia intersemiótica – por criadores emergentes e consagrados – pensada especificamente para publicações em redes sociais; indo além, podemos dizer que este movimento não está restrito às criações em poesia, já que a pandemia catalisou diferentes experimentações artísticas nestas condições.
No campo das redes sociais, um dos casos que ganhou notoriedade foi a “ocupação” da conta do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) no Instagram
https://www.instagram.com/mac_usp/ . Acesso em 5 de setembro de 2021.
realizada pelo artista Gustavo Von Ha em 2021. A imprensa cultural teve que desmentir boatos de que a conta do museu na rede social teria sido invadida por delinquentes virtuais, percepção que surge a partir de postagens que destoavam muito da comunicação convencional do museu, como as figuras dos populares cantores estadunidenses Michael Jackson e Britney Spears, da cantora popular brasileira Gretchen e da personagem Nazaré Tedesco, interpretada pela atriz brasileira Renata Sorrah, imortalizadas em memes da Internet. Muitas vezes incompreendidos como imagens engraçadas e banais que são compartilhadas por usuários das redes sociais, muito além de sua aparente trivialidade, os memes representam uma realidade semiótica e retórica (RUIZ MARTINÉZ, 2018), na qual contribuem para articular o discurso público da atualidade e servem para dar forma e refletir estados de opinião (SHIFMAN, 2014), além de ser uma das formas mais genuínas da chamada web 2.0
“Esse termo define sites que possibilitam a participação ativa dos visitantes, oferecendo ferramentas de relacionamento ou manipulação ou, ainda, formatos menos estáticos da informação. Essa nova condição não significa, necessariamente, uma mudança técnica como o termo pode sugerir, e sim uma nova concepção de uso da rede que posiciona o antigo “leitor” da web em um ativo produtor/gerenciador de conteúdos, um indivíduo que não está apenas disposto a buscar informações como também em produzi-las.” (NUNES, 2010, p. 95)
.
Britney no MAC-USP? – Imagens presentes no perfil do Instagram do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
Von Ha, artista que possui obras que lidam com o jogo entre verdadeiro e falso, se aproxima aqui da ideia de “Mentira de Artista” (NUNES, 2016), atuando com vista nas expectativas dos visitantes. A ação alcançou repercussão a partir do fato de que sua natureza artística não fora revelada inicialmente: antes da autoria do artista ser revelada, suas postagens eram questionadas, “considerando que tipo de objetos normalmente ocupam os museus, os quais não têm muitas vezes relação com a cultura pop” (ASSIS, 2021).
De fato, a ação de Von Ha escancara a distância existente entre a cultura da Internet e a cultura proclamada nos museus; isso é evidenciado por suas escolhas baseadas imagens recorrentes dos memes da Internet, recontextualizadas pelo artista que insere frases como “isso é arte?” e “... que obra de arte perfeita”, ironizando clichês sobre fruição e prática artística. Faz-nos pensar nos valores subtendidos para cada um dos contextos, permitindo enxergar os processos de legitimação, onde de um lado temos o museu como agente legitimador e, de outro, o público das redes. No contexto da pandemia, por sua vez, surge como um necessário respiro, gerando comicidade com grande potencial reflexivo.
Considerações finais
Este levantamento inicial de trabalhos de web arte por artistas brasileiros durante a pandemia torna evidente que estamos diante de um novo fôlego para uma produção que já tinha perdido boa parte do seu protagonismo nos últimos tempos, especialmente no Brasil. Evidentemente, este novo vigor a partir das imposições de uma tragédia sanitária não é nem um pouco louvável, mas, de qualquer maneira, a situação demostra a resiliência dos criadores em proporcionar continuidade às suas preocupações artísticas mesmo em condições pouco favoráveis. Aliás, teria sido muito mais confortável imaginar este sentido de retomada à web arte como uma reação político-poética à brutal digitalização das nossas vidas através da Internet nos últimos anos – e que se radicalizou no cotidiano na pandemia.
Indo além, uma consideração final necessária neste recorte seria pensar na permanência destas obras em um futuro próximo, já que a pandemia reacende não só a pertinência desta produção artística, mas também a necessidade de sua preservação. Após mais de vinte anos, são pouquíssimas iniciativas sobre web arte no Brasil que permaneceram acessíveis ao público através da Internet. Podemos, por exemplo, citar o caso emblemático do Museu Casa das Rosas, que tendo sido inicialmente pensada enquanto instituição a prover um acervo virtual – com obras acessíveis através da Internet – com uma mudança de gestão, todo o conteúdo desapareceu, tendo sido intencionalmente apagado
O conteúdo só não foi totalmente extinto por ainda permanecer em um CD-ROM de cópia de segurança, conforme depoimento recente do ex-coordenador de novas mídias da instituição, Lucas Bambozzi (2021).
dos computadores da instituição (que precisavam ser utilizados para outros fins) .
A lamentável perda de acesso a contribuições importantes para a história da web arte no Brasil é uma constatação mais clara hoje, quando começam a surgir iniciativas que visam a preservação destas manifestações. Durante a pandemia, Lucas Bambozzi, junto com a também artista Denise Agassi, tem gestado o projeto ://backup que terá por objetivo criar um espaço no qual os trabalhos pensados para a Internet permanecerão acessíveis, a partir do “resgate da memória dessa produção dispersa, com a disponibilização de obras que ainda poderiam ser acessadas e a emulação de outras que não conseguem mais ser reativadas” (RAHE, 2020). Uma importante perspectiva para que as obras brasileiras de web arte permaneçam vivas para além dos relatos históricos.
Este texto é dedicado às vítimas da COVID-19 e seus amigos e familiares.
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