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Arte transgênica via Internet
Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)
“Prefiro ser um cyborg
a ser uma deusa”.
Donna HARAWAY (1994:283)
Em um dos primeiros livros brasileiros sobre a tecnologia
do virtual , Derrick de Kerckhove (1993:56) atenta para a
questão do paradigma digital, no artigo “Senso comum,
antigo e novo”, assim como vários outros especialistas
no mesmo livro. Porém, Kerckhove irá proclamar o
senso comum – onde os signos possuem a mesma significação
para todos – como o ancentral da digitalização
contemporânea. Assim, com o advento do alfabeto, temos uma
base comum, um sistema de códigos que pode ser utilizado
nos mais diversos sentidos e ainda assim manter uma significação
comum. A mesma lógica pode ser aplicada no código
Morse, onde novamente temos um sistema de códigos, cujo
elemento isolado é destituído de significado, mas
estabelece-se sentido comum quando devidamente alinhado dentro
de uma ordem seqüencial. Segundo o autor, então, o
pensamento ocidental presume que tudo é passível
de divisão, tanto a matéria – através
dos átomos – quanto à linguagem textual –
através do alfabeto – e ainda, a informação
digital – através dos números binários.
Porém no digital, temos uma singular fragmentação:
jamais se dependeu tanto da ordem seqüencial; jamais a abstração
fora baseada em apenas dois elementos.
E o digital agregou-se ao caráter universal do alfabeto,
especialmente através das redes telemáticas. Tornou-se
onipresente. Porém, a mais importante de todas as atuais
fragmentações – ou pelo menos, a que nos diz
respeito mais diretamente, enquanto seres vivos – iria emergir
depois do paradigma digital: a codificação genética.
Nos anos 90, a existência humana passa a tomar um novo
sentido: a extensa divulgação da pesquisa internacional
do Genoma
Humano, passa a alimentar um novo imaginário, onde
coabitam a esperança de grandes avanços na medicina
e a possibilidade de leitura e manipulação irrestrita
de qualquer característica humana. O desvendamento do código
genético humano significa reduzir um organismo humano em
uma seqüência textual codificada, ou ainda, numa espécie
de mecanismo de informação, conforme HARAWAY (1994:263):
"Nas biologias modernas, a tradução do
mundo para um problema de codificação pode ser ilustrada
através da genética molecular, da ecologia, da teoria
da evolução biológica e da imunobiologia.
O organismo foi traduzido em problemas de codificação
genética e interpretação. A biotecnologia,
uma tecnologia da escritura, informa amplamente a investigação.
Num certo sentido, os organismos deixaram de existir enquanto
objetos de conhecimento dando lugar a componentes bióticos,
isto é, tipos especiais de mecanismos processadores de
informação".
Assim, dentro da nossa contemporaneidade temos a intersecção
da codificação digital e da codificação
genética dentro de um mesmo conceito: a informação.
Assim, com os olhos na cibernética determina GARCIA (2001):
"A informação é uma espécie
de vetor que vai permitir que se estabeleça um substrato
comum, que perpassa a matéria física, a matéria
viva e a máquina. Vai haver um terreno comum que vai perpassando
a vida, o físico e a máquina, e esse terreno comum
vai ser trabalhado através de uma linguagem comum, coisa
que não existia desde o tempo de Newton. Não existia
uma possibilidade de encontrar qualquer explicação
ou interpretação do real que cobrisse todo o campo
objetivo e agora, a partir da cibernética, isso é
possível, graças à constituição
da noção de informação, o substrato
comum a partir do qual se pode entender o objeto técnico,
o ser vivo e o ser inanimado".
Dentro destas questões de domínio informacional
– estabelecendo um território comum entre o natural
e o artificial – encontra-se a poética de artistas
como Eduardo Kac, pesquisador da arte transgênica, que transita
entre a biotecnologia e as redes computacionais. Para conhecer
um pouco mais desse universo, veremos mais a fundo, a instalação
Gênesis, apresentada em 2000, no Instituto Itaú Cultural,
em São Paulo.
4. 1 A poética tecnológica de Eduardo Kac
Eduardo Kac, artista nascido no Rio de Janeiro, mestre em Artes
Plásticas na The School of the Art Institute of Chicago
(EUA) e atualmente doutorando no programa CAAiA Star (GB), nos
anos 80 começa trabalhando com performances de conteúdo
político e social, muitas vezes realizadas em espaços
públicos. Em 1983 foi um dos pioneiros na holopoesia, em
busca de uma nova sintaxe, conforme ele mesmo descreve:
"A proposta da holografia é criar uma nova sintaxe
que não seja influenciada pelas poéticas visuais
do século XX, baseadas na visualidade da palavra na página.
Ficou claro para mim que, na era da eletrônica, a nova sintaxe
não ia emergir da página impressa. Só não
sabia de onde emergiria, porque eu achava que o uso bidimensional
da tela do computador era muito semelhante ao da página.
Então, surgiu a idéia de usar holografia para criar
um poema que pudesse explorar a noção de descontinuidade
ao invés da simultaneidade da palavra impressa. Você
pode projetar imagens de maneira que haja um intervalo entre uma
e outra. Outro aspecto interessante é a possibilidade de
explorar os pontos de vista. Você fecha um olho e abre outro
e tem visões diferentes de um mesmo objeto. Criei o que
chamei de leitura binocular. Por exemplo, você pode ter
uma situação em que seu olho esquerdo leia LUA ao
mesmo tempo em que o seu olho direito lê FACA. Estas são
características que distinguem a holopoesia das poéticas
da página impressa". (nota)
O desprendimento das suas criações em relação
aos limites da tela do monitor será evidente em toda a
sua produção: seus trabalhos mais recentes, apesar
de serem acessíveis através da Internet –
e conseqüentemente serem vistos através de monitores
– irão existir também na esfera do real, seja
por meio de instalações, seja por meio de performances.
Porém, através da Internet, o visitante fisicamente
distante poderá realizar modificações em
um ambiente remoto, por meio de dispositivos em tempo real e web
cams . A rede será um canal de telepresença.
A arte da telepresença será desenvolvida por Kac
a partir de 1986, na mostra “Brasil High Tech”, no
Rio de Janeiro, onde os participantes interagem com um robô
controlado por controle remoto. Em 1989 – ano da sua mudança
para os Estados Unidos – começa a desenvolver junto
com Ed Bernett, “Ornitorrinco”, onde, segundo
o artista , unem-se três campos do conhecimento até
então trabalhados separadamente na arte: a robótica,
as telecomunicações e a interatividade.
O Projeto Ornitorrinco dá origem a vários desdobramentos
como “Ornitorrinco em Copacabana” em 1992 e “Ornitorrinco
no Éden” em 1994. Sobre esse último, comentam
DONATI e PRADO (s/d):
"Este trabalho fazia a ponte entre o ciberespaço
da Internet com outros espaços físicos localizados
em Seatlle (controle), Chicago (robô) e Lexington (controle).
Para controle dos movimentos do ornitorrinco havia uma colaboração
não-hierárquica e compartilhada pelos participantes
anônimos em Seatlle e Lexington; estes participantes remotos
dividiam o mesmo corpo do robô e 'frame a frame' construíam
uma nova realidade. Este novo contexto criado por estas pessoas
era compartilhado por observadores na Web, que experimentavam
um espaço distante lúdico de uma perspectiva outra
que não a própria, pois a eles era possível
acompanhar os movimentos do ornitorrinco sob o ponto de vista
dele em um espaço construído com elementos obsoletos
da própria mídia, como discos LP, fitas magnéticas,
placas de circuitos, entre outros.
Esta experiência remota e compartilhada, entre participantes
em Seatlle e Lexington e usuários da Web, minimizava barreiras
lingüísticas, distâncias espaciais e temporais
em favor de uma experiência comum, onde espaços reais
e virtuais tornavam-se equivalentes temporariamente. A proposta
não era recriar espaços de ambientes existentes
mas que a imagem disponibilizada viesse se tornar o lugar; o participante
'vivenciava' a imagem que via não como um signo, no sentido
semiótico da palavra, mas como o 'locus', tornando este
trabalho uma ponte efêmera entre espaços reais e
uma arquitetura mental instantânea enquanto a navegação
se fazia".
(nota)
Em 1997, Kac atravessa
uma nova fronteira, que iria pontuar a sua produção
a partir de então: as questões da informação
artificial/natural, do biológico/tecnológico iriam
ser evidenciadas no trabalho Time Capsule, realizado em São
Paulo, na Casa das Rosas. Assim, o artista sintoniza-se em proximidade
com a pesquisa de artistas como Stelarc, que defende que o corpo
humano encontra-se obsoleto diante dos avanços tecnocientíficos
e produz extensões robóticas do corpo como a famosa
Third Hand (Terceira Mão) de 1981-94.
Medo da injeção –
O ato de inserir um chip no seu próprio tornozelo
fez do artista Eduardo Kac, uma celebridade: equipes de
jornais e emissoras de televisão foram até
o espaço das Casas das Rosas para acompanhar o momento,
sendo que, o canal 21 UHF de São Paulo (atualmente
Rede 21) transmitiu durante o seu principal noticiário,
ao vivo. Além de ser uma corajosa performance artística,
o ato estava permeado de rumores quanto à indisponibilidade
de um médico ou enfermeiro realizar a aplicação
por questões éticas – já que
o próprio artista injeta em si mesmo; e também
quanto ao fato da performance ter sido recusada por outra
instituição cultural, por receio de represálias.
A imagem acima foi retirada do site
do artista. |
Time Capsule que aconteceu no dia 11 de novembro de 1997, consistiu
na implantação pelo artista de um microchip para
a identificação de animais em seu próprio
tornozelo, contendo um número de identificação
acessível a aparelhos
de varredura específicos, quando conectados a Internet.
A performance, que mobilizou toda a imprensa nacional (sendo inclusive
transmitida ao vivo simultaneamente pela Internet e pelo canal
de televisão UHF 21, de São Paulo), aconteceu numa
espécie de quarto de hospital (o espaço físico
da Casa das Rosas temporariamente convertido), com o acompanhamento
de um médico.
Em uma das paredes do “quarto”, várias fotografias
antigas da família de Kac, dizimada na Polônia durante
a Segunda Guerra, referenciam a memória. Inicialmente,
o artista justapõe memórias familiares, memórias
materializadas sob a forma de antigas fotografias com memórias
artificiais, memórias imateriais, segundo MACHADO (2001):
"...Pode-se ler a experiência de Kac (...) como
sintoma de uma mutação biológica que deverá
acontecer proximamente, quando memórias digitais forem
implantadas em nossos corpos para complementar ou substituir as
nossas próprias memórias. Esta última leitura
é claramente autorizada pela associação que
faz o artista da implantação de uma memória
numérica em seu próprio corpo e a exposição
pública de suas memórias familiares, suas memórias
externas, materializadas sob a forma de velhas fotografias de
seus antepassados remotos".
Parte integrante da dissertação
de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas
no universo da rede Internet", realizada sob a orientação
do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre
em contato.
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