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Partilha e simulação
Fabio Oliveira Nunes (Fabio FON)
“Bem-vindo ao deserto
do real”.
Morpheus, personagem do filme Matrix,
parafraseando Jean Baudrillard.
Ano 1999. Neo é levado pela recepcionista do oráculo
até uma sala de estar onde estão várias crianças.
Ela pede para que ele aguarde um pouco. Na sua frente, um pequeno
garoto com longas vestes orientais e cabelos ralos entorta a haste
de uma colher somente fixando seu olhar no objeto.
Neo, surpreso, admira o que vê. O garoto, por sua vez,
retorna a colher ao seu ponto original e a entrega silenciosamente
a Neo. Ele pega a colher, a examina e continua perplexo. O menino,
transmitindo a tranqüilidade de um monge, diz:
– Não tente entortar a colher. É impossível.
Em vez disso, apenas tente ver a verdade.
– Que verdade? – interroga Neo.
– Que a colher não existe.
– A colher não existe? – Neo examinava a colher
ainda mais minuciosamente.
– Você verá que não é a colher
que entorta. É você mesmo.
Mr. Anderson – Cena
do filme Matrix (The Matrix, EUA,1999; Direção:
Andy Wachowski, Larry Wachowski), primeiro da trilogia de
outros dois filmes – além de curtas de animação
Animatrix – que apresentam um universo no qual os
seres humanos estão subjugados pelas máquinas
e inseridos num poderoso sistema de realidade virtual. Um
outro filme que desenvolve um universo semelhante é
13º andar (13th Floor, EUA, 1999; Direção:
Josef Rusnak) que une realidade virtual e sistemas de inteligência
artificial. Anteriormente, há também outros
vários filmes que tematizam a realidade virtual como
por exemplo, Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man, EUA,
1992; Direção: Brett Leonard), uma produção
que revoluciona os efeitos especiais do cinema da época. |
O trecho acima é uma cena do filme Matrix, considerado
por muitos como um dos pontos altos da ficção científica
do fim dos anos 90, onde é narrada a ascensão de
Neo, um hacker que descobre que a vida que conhece no século
20 é uma simulação imposta por máquinas
digitais intelectualmente superiores. Na verdade, ele encontra-se
no século 22 e as máquinas que dominam a terra,
utilizam-se de uma fantástica
realidade virtual para manter os seres humanos – fonte
de energia bioelétrica – quietos e ocupados em suas
mentes, enquanto passam toda sua existência em câmaras,
nutridos por restos liquefeitos de seus irmãos.
A substituição da realidade na qual nossos corpos
estão inseridos por um espaço sintético de
realidade, um espaço de domínio mental – no
qual psicológica e perceptivamente imergimos – povoa
o imaginário humano. No universo dos games, o indivíduo
ali participante é muitas vezes, representado na tela por
um ator eletrônico, personificando-se enquanto parte do
universo eletronicamente proposto. Transfere-se enquanto sujeito.
O foco de atenção parece favorecer o distanciamento
da realidade real – num estado de suspensão entre
duas realidades, uma psicológica, outra física.
Essa imersão certamente não está ligada
somente a uma questão de atenção e foco de
situação e sim, também aos nossos processos
sensoriais, dos nossos sentidos físicos – visão,
audição, tato e olfato – mas também
a sentidos induzidos por estes na relação com o
mundo externo, como o senso de direção e profundidade,
por exemplo. E ao mesmo tempo, a atenção é
um processo muito pessoal – assim como o poder de concentração
– podendo ser destituída facilmente por estímulos
externos do mundo real. Para lidar com essas questões,
surgem vários dispositivos – tais como óculos,
fones, capacetes – que possibilitam uma imersão que
não depende somente do foco do participante, num percurso
que busca o preenchimento dos nossos sentidos, conforme KERCKHOVE
(1997:51):
"Nas telas hiper e multimídias, a combinatória
plurissensorial que naturalmente nosso cérebro pratica
para construir algumas de suas imagens tornou-se possível
fora do próprio cérebro. (...) A transfusão
de toda nossa sensorialidade das modalidades analógicas
às modalidades digitais pela numeralização
elimina o obstáculo dos sentidos. Cada sentido torna-se
traduzível em termos de cada um dos outros. A moda das
multimídias reflete, pois, nosso desejo profundo de projetar
nos nossos sentidos exteriorizados uma função cognitiva
integrada. É o sonho da atividade artística".
Por este caminho, um dos antecessores da realidade virtual é
o Sensorama. Numa tentativa de múltiplas sensações,
Morton Heilig desenvolve em 1962 uma espécie de cinema
dos sentidos onde o indivíduo tinha a sua disposição
uma tela com visão
estereoscópica, cheiros, ventiladores de ar, som e
uma cadeira que tremia, tudo isso conforme o andamento da narrativa
acompanhada – um passeio pelo bairro do Brooklyn em Nova
Iorque. Alguns dos elementos desse advento – modernizados
certamente – ainda permanecem nos simuladores e cinemas
em terceira dimensão, presentes em centros de entretenimento.
Mas certamente, a discussão sobre a realidade
virtual não se resume simplesmente numa aglutinação
sensorial, ainda que sua existência diretamente dependa
do fator perceptivo. Numa breve observação, vê-se
que seus antecessores como a fotografia e o cinema, dependem diretamente
do mundo real para existir, bem como a televisão que ainda
também parte de princípios de representação
do século XIX (COUCHOT, 1993:41). Mesmo a arte moderna,
que se livra para representação para a presentificação,
agora apresentando a si mesma como presente, permanece absorta
no domínio do real. Na Realidade Virtual, a simulação
abre espaço para a reinvenção, para a criação
de modelos e situações que não cabem no âmbito
da realidade física pela sua própria essência,
ainda que alimentada pela nossa vivência no plano físico.
O trabalho
Desertesejo (2000/2002) do artista brasileiro Gilbertto Prado,
ambiente virtual criado em VRML (Virtual Reality Modeling Language
– Linguagem de modelação de realidade virtual)
e disponibilizado na Internet, transita por estas questões.
É sobre esse trabalho que vamos tecer considerações
mais adiante.
5.1 Redes telemáticas e participação
Gilbertto Prado é um dos artistas brasileiros mais atuantes
no campo da arte mídia: sua tese de doutorado defendida
em 1994 na Universidade de Paris I, Panthéon Sorbonne,
que teve por tema as experimentações artísticas
telemáticas, é uma das primeiras realizadas abordando
essas questões. Participa do grupo Art-Réseaux,
Paris e em diversos eventos – exposições,
colóquios – realizados no exterior. É professor
do departamento de Artes Plásticas da ECA/USP.
Sua trajetória confunde-se com o próprio percurso
das artes ligadas aos meios de comunicação: já
realizou trabalhos de arte postal, fax-arte, redes computacionais
pré-internet, sites na rede e por último, realidade
virtual. Sua postura, investigativa nos novos meios é,
em certa medida, demonstrada por projetos de pesquisa e reflexão
teórica como o site
wAwRwT , que visa a observar espaços de arte na rede
Internet.
Um dos seus principais trabalhos utilizando redes computacionais
é Moone, La Face Cachée de la Lunne (1992), apresentado
no Eletronic
Cafe em Paris e em Kassel (IX Documenta), na Alemanha. Neste
trabalho, através de uma linha de conexão
via RSDI entre as duas cidades, o artista disponibiliza um
espaço de criação coletiva, no qual é
possível produzir uma imagem em conjunto com parceiros
distantes – e desconhecidos – em tempo real. Assim,
através desse processo, a mesma imagem aparece simultaneamente
em diferentes monitores, ao passo que cada participante pode,
em tempo real, acompanhar, interagir, modificar as alterações
de outro ou mesmo sobrepor com os elementos de sua escolha. Trata-se
então de estabelecer um espaço de criação
coletiva, cujo trabalho apresenta-se mais como um canal de processo
e receptáculo dessas intervenções, onde a
ação do participante é necessária
para que a poética do trabalho se efetive. Sobre as possibilidades
de diálogo participativo em redes, PRADO (1997b:43) discorre:
"Transposto ao plano da prática, os intercâmbios
levam em consideração as relações
entre a validade primeira do projeto e a coerência desenvolvida
pela nossa participação crítica, entre a
unidade que inaugura o projeto e a pluralidade possível
que venha a surgir. Em ocorrência, nós temos um trajeto
que não tinha jamais se estabelecido anteriormente, que
não se estanca num ponto determinado, numa perspectiva
voluntariamente limitada do espaço artístico-participativo,
mas num mundo perpetuamente nascente".
Nunca te vi, sempre criei –
Ao se falar em colaboração, temos o trabalho
MOONE de Gilbertto Prado, realizado em 1992 durante a IX
Documenta de Kassel. Aqui, o artista disponibilizava através
de uma rede digital (ISDN) uma tela partilhada entre dois
visitantes: um localizado em Paris (França) e outro
em Kassel (Alemanha). Em tempo real, os participantes fisicamente
distantes e eventualmente desconhecidos, dispunham de ferramentas
de desenho e elaboravam composições em conjunto.
Nas imagens acima, respectivamente, a tela de abertura e
algumas das imagens produzidas em colaboração. |
Ainda que anterior à Internet, estava consumada a relação
de arte em rede computacional em Moone, numa escala de contato
simultâneo que ainda nos impressiona quando nos deparamos
com algo semelhante na web. Um exemplo, que se aproxima em modus
operanti e resultados, é o site de web arte Open
Studio, do artista Andy Deck, onde se disponibiliza um canal
no qual os usuários, quando simultaneamente conectados,
podem desenhar coletivamente, acompanhar e sobrepor garatujas.
Muito posterior ao trabalho realizado em RDSI, reforça
o caráter preambular das questões levantadas por
Prado.
Parte integrante da dissertação
de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas
no universo da rede Internet", realizada sob a orientação
do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre
em contato.
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