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Partilha e simulação
CONTINUAÇÃO
Voltando ao trabalho de Prado, temos então, antes de entrar
no primeiro ambiente – o único entre os três
em que a passagem é indispensável para ver outro
ambiente – uma situação na qual o visitante
encontra-se dentro de uma caverna que possui uma fenda luminosa
de onde caem algumas pedras. Nesta escura caverna, o único
foco de luz provém do exterior, por meio da fenda, iluminando
um pequeno espaço no chão, onde estão as
pedras. Cada pedra é clicável e direciona para um
lugar diferente do ambiente Ouro. Este é o momento de reclusão,
o espaço primeiro das escolhas de destino, bifurcação
de caminhos.
Essa situação pode se relacionar com a conhecida
alegoria da caverna, colocada por Platão no livro VII,
em “A República”. É uma leitura possível:
a caverna por Platão espelha a própria prática
filosófica, sua busca em torno da verdade, do conhecimento,
da verdadeira realidade e o posterior retorno ao mundo das trevas,
da obscuridade, da aceitação das coisas conforme
são vistas. A metáfora da luz possui uma múltipla
dimensão, traduzindo a ascensão tanto como filosófica
quanto científica ou política – contexto de
“A República”. Observando mais detalhadamente:
"A alegoria da caverna dramatiza a ascese do conhecimento
(...). Descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma
caverna, os reflexos de simulacros que – sem que ele possa
ver – são transportados à frente de um fogo
artificial. Como sempre viu essa projeção de artefatos,
toma-os por realidade e permanece iludido. A situação
desmonta-se e inverte-se desde que o prisioneiro se liberta: reconhece
o engano em que permanecera, descobre a “encenação”
que até então o enganara e, depois de galgar a rampa
que conduz à saída da caverna, pode lá fora
começar a contemplar a verdadeira realidade. Aos poucos,
ele, primeiro através de reflexos – como o do céu
estrelado refletido na superfície das águas tranqüilas
– até finalmente ter condições para
olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade".
(FLORIDO, 1999:26)
Em ambas as situações, é a partir da caverna
que se dará o acesso a um novo patamar de realidade. Além
disso, o ritual iniciatório frente à luz, pode se
associar ao caminho colocado em Desertesejo: Ouro, a navegação
solitária, é um nível obrigatório
para os outros dois momentos. É preciso acostumar-se a
esta nova realidade assim como os olhos demoram a adaptar a luz.
Fiat Lux – Abaixo,
o primeiro momento de Desertesejo, onde o visitante irá
clicar em uma das pedras caídas da fenda luminosa
da caverna. Cada pedra transporta o indivíduo para
um diferente espaço e sob um diferente avatar (onça,
águia ou serpente). Acima, a tela de abertura do
trabalho, disponível em http://www.itaucultural.org.br/desertesejo. |
Ao clicar, então, em uma das pedras, somos transportados
para o primeiro ambiente, o Ouro. O visitante poderá imergir
no espaço sob a ótica de um dos três animais:
serpente, águia e onça. Cada animal terá
uma perspectiva e velocidade diferente ao navegar o espaço.
E ainda, o visitante irá surgir em uma localização
diferente, dependendo da pedra escolhida na caverna. Além
da extrema qualidade dos gráficos – formas e respectivas
texturas – o ambiente chama a atenção pela
grandiosidade de sua extensão: o deserto colocado por Prado
perde-se no horizonte, nas suas reentrâncias e montanhas.
E por conta dessa proporção, alcança-se um
patamar poético, onde solidão e desamparo se encontram
em um percurso em suspensão, sem rumo definido.
Tríade virtual –
Respectivamente temos aqui imagens dos três momentos
de Desertesejo: Ouro, Viridis e Plumas. O trânsito
entre os espaços efetua-se através de portais
localizados em cada ambiente. |
Em proximidade, como possuidor desse mesmo percurso indefinido
e solitário, podemos citar o pioneiro trabalho Legibles
Cities (1989-1992) do australiano Jeffrey Shaw. O artista disponibiliza
num espaço expositivo real, uma bicicleta equipada com
sensores de movimento – no pedal e guidom – e projeção
de um espaço virtual em 3D. Através destes dispositivos,
o participante irá “pedalar” pelo espaço
virtual – este criado em semelhança aos mapas de
Nova Iorque e outras cidades – todo ele composto de textos
poéticos no lugar de edifícios ou casas. Assim como
em Desertesejo não há um objetivo ou caminho explicitamente
colocado, a despeito do universo dos games, em que fases e tarefas
inclinam para um objeto bem definido. Coloca-se o espaço
à mercê da exploração de suas territorialidades.
Para ler, pedalar –
Um dos trabalhos de realidade virtual mais conhecidos, Legible
Cities transforma as vias de uma cidade (Nova Iorque e outras
cidades), em espaços textuais, poéticos, exploráveis
através de uma bicicleta que o interator realmente
pedala. Aqui, uma das visões do ambiente. |
Voltando à caverna, a pedra clicada será protagonista
de um rito de passagem proposto pelo artista: em determinados
momentos do ambiente será possível encontrar um
monte de pedras em formato piramidal onde é possível
“colocar” a pedra antes clicada – e metaforicamente,
carregada pelo visitante até este momento. Sobre o entendimento
deste rito, discorre PRADO (2003a):
"Durante a realização deste trabalho eu
fui andar em alguns desertos como o de Atacama no Chile e ainda
regiões áridas e arenosas como os lençóis
maranhenses entre outros locais – só lembrando que
este espaço que nós vemos é onírico
e construído e não réplica de um espaço
existente, embora seja marcado de alusões e referências,
decalcado pelas sensações, estórias e percursos.
Mas, quando eu estava no Chile, andando no meio do deserto, eu
percebi alguns desses montinhos de pedras espalhados naquele vasto
espaço e me perguntava, qual seria a intenção
desses pequenos montes com essas pedras empilhadas e colocadas
acerca dos caminhos e trilhas na areia, será que estavam
aí para guiar alguém? Para que se tivesse alguma
referência, pontos de reparo nesses vastos espaços?
Até que perguntei para um nativo, mas afinal de contas
porque que empilhavam essas pedras nesses locais, e ele respondeu
que eram lugares especiais. Quando você sai da sua casa
você pega de perto de onde você vive uma pedra e a
carrega até o momento em que você chega em algum
lugar, aonde você acha que aquele é o local onde
a sua pedra deve ser depositada e então você a dispõe
junto com as outras. É uma espécie de oferenda.
Pensando nisso, transformei esses montículos que encontramos
nos caminhos do Desertesejo, em marcadores de presença
(contador)".
Mais do que representações numéricas de
passagem, essas marcas denotam um consenso da coletividade, como
lugar de intersecção de consciências.
Além dos montes de pedra, o visitante irá também
encontrar portais em formas cilíndricas, que darão
acesso aos outros dois ambientes de Desertesejo. Cada cilindro
é portal para um ambiente. Assim, clicando em um deles,
podemos seguir para o segundo momento: Viridis.
Viridis
é o espaço das referências geográficas,
terrestres. É intermediário entre os outros dois
ambientes: estar só e perceber-se acompanhado. Por meio
de uma das salas do ambiente é possível visualizar
a entrada de outros participantes no mesmo espaço: vê-se
vários céus fotografados e cada alteração
destes indica que um novo visitante entra no espaço através
da alteração dos céus fotograficamente apresentados.
Conforme a hora no lugar de origem do novo visitante, o céu
se apresentará como noite ou dia, amanhecer
ou entardecer.
Ao contrário de Ouro, Viridis é muito mais contido
em sua expansão, apresenta-se como um espaço onírico,
em vários tons de azul, referenciando diretamente um trabalho
anterior do artista: 9/4 Fragmentos de Azul (1997), apresentado
inicialmente
no Itaú Cultural, em São Paulo, que consistia em
uma instalação multimídia com diversos monitores
de telas sensíveis ao toque dos visitantes. Nas telas,
pelas pontas de seus dedos, os participantes alteravam a composição
das imagens, num “azul eletrônico” comum a todas
elas. Igualmente referenciando a Yves Klein, o artista Stephan
Barron propõe situações semelhantes em Le
Bleu du Ciel (O azul do céu) (1992/1993). Neste trabalho
– instalação – o visitante pode comparar
o céu onde ele se encontra, capturado através de
uma câmera e ao mesmo tempo, visualizar o céu de
um espaço fisicamente distante e ainda, num terceiro momento,
ver a somatória visual dos dois céus sobrepostos
criando um céu de cor média, que não existe
em lugar algum. Muito parecido é Le Jour et la nuit (O
dia e a noite) (1995) em que o artista disponibiliza dois computadores
que capturam imagens do céu, um no Brasil e outro na Austrália,
para a justaposição e mistura dos céus de
ambos . Assim como a sala dos céus de Desertesejo, as instalações
de Barron devem contribuir para a tomada de consciência
pelo espectador da interação do local e do planetário
e das responsabilidades implicadas pelo caráter ubiqüitário
da tecnologia (COUCHOT, 2003:244).
O ambiente Plumas, o último dos três momentos, é
quando se efetiva o contato com o outro. Este espaço inicialmente
se parece muito com o deserto de Ouro, sendo, porém, mais
onírico e distante de uma aproximação mais
íntima com o real, apresentando diferentes situações:
com texturas e cores próximas de Ouro, monocromática
ou ainda, line-art – deixando a estrutura à mostra,
onde não vemos chão, embora sabemos que lá
ele está. Porém, a maior diferença em relação
aos outros ambientes é certamente sua propriedade multiusuário
– 50 visitantes podem conectar-se e conversar via texto
simultaneamente, em tempo real, enxergando uns aos outros através
de seus avatares.
Aí se consome uma outra relação: o contato.
Na web, esta prática é difundida nas salas de bate-papo
virtual (chats), populares desde o advento do IRC
(Internet Relax Chat), em 1988, até as salas de bate-papo
nos grandes sites portais que aglutinam usuários das mais
variadas idades e interesses. Na cultura contemporânea do
solipsismo, as pessoas parecem procurar preencher o vazio das
suas relações sociais, cada vez mais inacessíveis
pela verticalização das moradias, da falta de laços
pessoais nas grandes metrópoles, da desconfiança
no outro. E esse vazio – como já foi dito –
é possível de ser simbolizado pela imagem do deserto.
Voltando-se a Plumas, disponibiliza-se um canal de troca, partilha
e relações:
"O artista, no caso, potencializa uma situação
onde as pessoas vão entrar e vão poder partilhar
esse mundo com outras pessoas; poder percebê-lo de distintas
maneiras e de pontos de vistas inusitados. O que é gerado
é uma potencialidade, é um ambiente e uma situação
em potencial, na qual você vai encontrar ou não com
outras pessoas, se integrar ou não a outras ações
e performances ou vai ficar navegando, explorando e criando seus
próprios percursos, nesse ambiente poético virtual
partilhável". (PRADO, 2003a)
A utilização de ambientes multiusuário entre
os artistas de arte mídia é cada vez mais recorrente:
os artistas partem para a instauração de canais
de interação entre as pessoas. Em 1998, Jeffrey
Shaw, criador do pioneiro trabalho Legible Cities, desenvolve
The Distributed Legible Cities, onde novamente o participante
tem em seu poder uma bicicleta, em sua frente, o mundo virtual
3D e pode, ainda, encontrar outros usuários no espaço,
visualizá-los através de uma representação
gráfica e conversar entre si via voz. Assim como no caso
de Desertesejo, não temos uma coletividade interagindo
em tempo real diretamente com um software ou criando um trabalho
coletivo como em Moone. A participação indivíduo-objeto
– nos caminhos participativos da arte de Lígia Clark
e Hélio Oiticica – passa a dar lugar também
para a interação indivíduo-indivíduo,
promovendo interfaces insólitas – artísticas
– de contato humano, ou menos, de presença simultânea
num mesmo espaço.
No vácuo social e ideológico da nossa contemporaneidade,
a Realidade Virtual nos propõe novos espaços de
expansão dos nossos limites. Os artistas dão forma
a essas necessidades de partilha, de encontro com o outro, estabelecendo
canais de contato. A existência pode ter os seus vazios
preenchidos por esse imaginário habitável –
que é a Internet – ou mesmo – nos caminhos
que a ficção nos propõe – ser sumariamente
substituída.
Parte integrante da dissertação
de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas
no universo da rede Internet", realizada sob a orientação
do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre
em contato.
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