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2003

FÁBIO OLIVEIRA NUNES







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Partilha e simulação

CONTINUAÇÃO

Voltando ao trabalho de Prado, temos então, antes de entrar no primeiro ambiente – o único entre os três em que a passagem é indispensável para ver outro ambiente – uma situação na qual o visitante encontra-se dentro de uma caverna que possui uma fenda luminosa de onde caem algumas pedras. Nesta escura caverna, o único foco de luz provém do exterior, por meio da fenda, iluminando um pequeno espaço no chão, onde estão as pedras. Cada pedra é clicável e direciona para um lugar diferente do ambiente Ouro. Este é o momento de reclusão, o espaço primeiro das escolhas de destino, bifurcação de caminhos.

Essa situação pode se relacionar com a conhecida alegoria da caverna, colocada por Platão no livro VII, em “A República”. É uma leitura possível: a caverna por Platão espelha a própria prática filosófica, sua busca em torno da verdade, do conhecimento, da verdadeira realidade e o posterior retorno ao mundo das trevas, da obscuridade, da aceitação das coisas conforme são vistas. A metáfora da luz possui uma múltipla dimensão, traduzindo a ascensão tanto como filosófica quanto científica ou política – contexto de “A República”. Observando mais detalhadamente:

"A alegoria da caverna dramatiza a ascese do conhecimento (...). Descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros que – sem que ele possa ver – são transportados à frente de um fogo artificial. Como sempre viu essa projeção de artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido. A situação desmonta-se e inverte-se desde que o prisioneiro se liberta: reconhece o engano em que permanecera, descobre a “encenação” que até então o enganara e, depois de galgar a rampa que conduz à saída da caverna, pode lá fora começar a contemplar a verdadeira realidade. Aos poucos, ele, primeiro através de reflexos – como o do céu estrelado refletido na superfície das águas tranqüilas – até finalmente ter condições para olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade". (FLORIDO, 1999:26)

Em ambas as situações, é a partir da caverna que se dará o acesso a um novo patamar de realidade. Além disso, o ritual iniciatório frente à luz, pode se associar ao caminho colocado em Desertesejo: Ouro, a navegação solitária, é um nível obrigatório para os outros dois momentos. É preciso acostumar-se a esta nova realidade assim como os olhos demoram a adaptar a luz.

Fiat Lux – Abaixo, o primeiro momento de Desertesejo, onde o visitante irá clicar em uma das pedras caídas da fenda luminosa da caverna. Cada pedra transporta o indivíduo para um diferente espaço e sob um diferente avatar (onça, águia ou serpente). Acima, a tela de abertura do trabalho, disponível em http://www.itaucultural.org.br/desertesejo.

Ao clicar, então, em uma das pedras, somos transportados para o primeiro ambiente, o Ouro. O visitante poderá imergir no espaço sob a ótica de um dos três animais: serpente, águia e onça. Cada animal terá uma perspectiva e velocidade diferente ao navegar o espaço. E ainda, o visitante irá surgir em uma localização diferente, dependendo da pedra escolhida na caverna. Além da extrema qualidade dos gráficos – formas e respectivas texturas – o ambiente chama a atenção pela grandiosidade de sua extensão: o deserto colocado por Prado perde-se no horizonte, nas suas reentrâncias e montanhas. E por conta dessa proporção, alcança-se um patamar poético, onde solidão e desamparo se encontram em um percurso em suspensão, sem rumo definido.

Tríade virtual – Respectivamente temos aqui imagens dos três momentos de Desertesejo: Ouro, Viridis e Plumas. O trânsito entre os espaços efetua-se através de portais localizados em cada ambiente.

Em proximidade, como possuidor desse mesmo percurso indefinido e solitário, podemos citar o pioneiro trabalho Legibles Cities (1989-1992) do australiano Jeffrey Shaw. O artista disponibiliza num espaço expositivo real, uma bicicleta equipada com sensores de movimento – no pedal e guidom – e projeção de um espaço virtual em 3D. Através destes dispositivos, o participante irá “pedalar” pelo espaço virtual – este criado em semelhança aos mapas de Nova Iorque e outras cidades – todo ele composto de textos poéticos no lugar de edifícios ou casas. Assim como em Desertesejo não há um objetivo ou caminho explicitamente colocado, a despeito do universo dos games, em que fases e tarefas inclinam para um objeto bem definido. Coloca-se o espaço à mercê da exploração de suas territorialidades.

Para ler, pedalar – Um dos trabalhos de realidade virtual mais conhecidos, Legible Cities transforma as vias de uma cidade (Nova Iorque e outras cidades), em espaços textuais, poéticos, exploráveis através de uma bicicleta que o interator realmente pedala. Aqui, uma das visões do ambiente.

Voltando à caverna, a pedra clicada será protagonista de um rito de passagem proposto pelo artista: em determinados momentos do ambiente será possível encontrar um monte de pedras em formato piramidal onde é possível “colocar” a pedra antes clicada – e metaforicamente, carregada pelo visitante até este momento. Sobre o entendimento deste rito, discorre PRADO (2003a):

"Durante a realização deste trabalho eu fui andar em alguns desertos como o de Atacama no Chile e ainda regiões áridas e arenosas como os lençóis maranhenses entre outros locais – só lembrando que este espaço que nós vemos é onírico e construído e não réplica de um espaço existente, embora seja marcado de alusões e referências, decalcado pelas sensações, estórias e percursos. Mas, quando eu estava no Chile, andando no meio do deserto, eu percebi alguns desses montinhos de pedras espalhados naquele vasto espaço e me perguntava, qual seria a intenção desses pequenos montes com essas pedras empilhadas e colocadas acerca dos caminhos e trilhas na areia, será que estavam aí para guiar alguém? Para que se tivesse alguma referência, pontos de reparo nesses vastos espaços? Até que perguntei para um nativo, mas afinal de contas porque que empilhavam essas pedras nesses locais, e ele respondeu que eram lugares especiais. Quando você sai da sua casa você pega de perto de onde você vive uma pedra e a carrega até o momento em que você chega em algum lugar, aonde você acha que aquele é o local onde a sua pedra deve ser depositada e então você a dispõe junto com as outras. É uma espécie de oferenda. Pensando nisso, transformei esses montículos que encontramos nos caminhos do Desertesejo, em marcadores de presença (contador)".

Mais do que representações numéricas de passagem, essas marcas denotam um consenso da coletividade, como lugar de intersecção de consciências.

Além dos montes de pedra, o visitante irá também encontrar portais em formas cilíndricas, que darão acesso aos outros dois ambientes de Desertesejo. Cada cilindro é portal para um ambiente. Assim, clicando em um deles, podemos seguir para o segundo momento: Viridis.

Viridis é o espaço das referências geográficas, terrestres. É intermediário entre os outros dois ambientes: estar só e perceber-se acompanhado. Por meio de uma das salas do ambiente é possível visualizar a entrada de outros participantes no mesmo espaço: vê-se vários céus fotografados e cada alteração destes indica que um novo visitante entra no espaço através da alteração dos céus fotograficamente apresentados. Conforme a hora no lugar de origem do novo visitante, o céu se apresentará como noite ou dia, amanhecer ou entardecer.

Ao contrário de Ouro, Viridis é muito mais contido em sua expansão, apresenta-se como um espaço onírico, em vários tons de azul, referenciando diretamente um trabalho anterior do artista: 9/4 Fragmentos de Azul (1997), apresentado inicialmente no Itaú Cultural, em São Paulo, que consistia em uma instalação multimídia com diversos monitores de telas sensíveis ao toque dos visitantes. Nas telas, pelas pontas de seus dedos, os participantes alteravam a composição das imagens, num “azul eletrônico” comum a todas elas. Igualmente referenciando a Yves Klein, o artista Stephan Barron propõe situações semelhantes em Le Bleu du Ciel (O azul do céu) (1992/1993). Neste trabalho – instalação – o visitante pode comparar o céu onde ele se encontra, capturado através de uma câmera e ao mesmo tempo, visualizar o céu de um espaço fisicamente distante e ainda, num terceiro momento, ver a somatória visual dos dois céus sobrepostos criando um céu de cor média, que não existe em lugar algum. Muito parecido é Le Jour et la nuit (O dia e a noite) (1995) em que o artista disponibiliza dois computadores que capturam imagens do céu, um no Brasil e outro na Austrália, para a justaposição e mistura dos céus de ambos . Assim como a sala dos céus de Desertesejo, as instalações de Barron devem contribuir para a tomada de consciência pelo espectador da interação do local e do planetário e das responsabilidades implicadas pelo caráter ubiqüitário da tecnologia (COUCHOT, 2003:244).

O ambiente Plumas, o último dos três momentos, é quando se efetiva o contato com o outro. Este espaço inicialmente se parece muito com o deserto de Ouro, sendo, porém, mais onírico e distante de uma aproximação mais íntima com o real, apresentando diferentes situações: com texturas e cores próximas de Ouro, monocromática ou ainda, line-art – deixando a estrutura à mostra, onde não vemos chão, embora sabemos que lá ele está. Porém, a maior diferença em relação aos outros ambientes é certamente sua propriedade multiusuário – 50 visitantes podem conectar-se e conversar via texto simultaneamente, em tempo real, enxergando uns aos outros através de seus avatares.

Aí se consome uma outra relação: o contato. Na web, esta prática é difundida nas salas de bate-papo virtual (chats), populares desde o advento do IRC (Internet Relax Chat), em 1988, até as salas de bate-papo nos grandes sites portais que aglutinam usuários das mais variadas idades e interesses. Na cultura contemporânea do solipsismo, as pessoas parecem procurar preencher o vazio das suas relações sociais, cada vez mais inacessíveis pela verticalização das moradias, da falta de laços pessoais nas grandes metrópoles, da desconfiança no outro. E esse vazio – como já foi dito – é possível de ser simbolizado pela imagem do deserto.

Voltando-se a Plumas, disponibiliza-se um canal de troca, partilha e relações:

"O artista, no caso, potencializa uma situação onde as pessoas vão entrar e vão poder partilhar esse mundo com outras pessoas; poder percebê-lo de distintas maneiras e de pontos de vistas inusitados. O que é gerado é uma potencialidade, é um ambiente e uma situação em potencial, na qual você vai encontrar ou não com outras pessoas, se integrar ou não a outras ações e performances ou vai ficar navegando, explorando e criando seus próprios percursos, nesse ambiente poético virtual partilhável". (PRADO, 2003a)

A utilização de ambientes multiusuário entre os artistas de arte mídia é cada vez mais recorrente: os artistas partem para a instauração de canais de interação entre as pessoas. Em 1998, Jeffrey Shaw, criador do pioneiro trabalho Legible Cities, desenvolve The Distributed Legible Cities, onde novamente o participante tem em seu poder uma bicicleta, em sua frente, o mundo virtual 3D e pode, ainda, encontrar outros usuários no espaço, visualizá-los através de uma representação gráfica e conversar entre si via voz. Assim como no caso de Desertesejo, não temos uma coletividade interagindo em tempo real diretamente com um software ou criando um trabalho coletivo como em Moone. A participação indivíduo-objeto – nos caminhos participativos da arte de Lígia Clark e Hélio Oiticica – passa a dar lugar também para a interação indivíduo-indivíduo, promovendo interfaces insólitas – artísticas – de contato humano, ou menos, de presença simultânea num mesmo espaço.

No vácuo social e ideológico da nossa contemporaneidade, a Realidade Virtual nos propõe novos espaços de expansão dos nossos limites. Os artistas dão forma a essas necessidades de partilha, de encontro com o outro, estabelecendo canais de contato. A existência pode ter os seus vazios preenchidos por esse imaginário habitável – que é a Internet – ou mesmo – nos caminhos que a ficção nos propõe – ser sumariamente substituída.

Parte integrante da dissertação de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas no universo da rede Internet", realizada sob a orientação do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre em contato.

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